Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

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Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

terça-feira, março 15, 2005

Helena de Tróia.

Numa sessão clínica recente, por ocasião do Natal, a minha paciente M. conta-me a seguinte história: “ O filme Tróia conta a história da Bela Helena de Tróia. Ela foi raptada pelos troianos e depois vai lá o cavaleiro Ulisses para a salvar. Ele constrói um cavalo que os troianos pensam ser um presente, mas que, na verdade, tem lá dentro um exército para os combater. Depois da guerra, Ulisses salva a Helena e leva-a de novo para a Grécia que é a sua terra Natal.”

Na verdade e segundo reza a história, a lenda da Helena de Tróia não é bem assim. Da mesma maneira, o filme a que se refere intitulado Tróia, não conta a história de Helena, mas pretende antes exaltar os poderes do Guerreiro Aquiles, esse sim, o verdadeiro protagonista - personagem principal interpretado por Brad Pitt. Portanto, a partir da criação da minha paciente estamos desde logo em presença de duas imprecisões: uma de carácter histórico, mais universal; outra de carácter identitário.

Helena vai por mão de Páris, Príncipe de Tróia e seu amante e amor (Páris é referido como um dos maridos de Helena) para Tróia, deixando para trás a Grécia e Menelau, seu esposo. A pretexto da desonra de Menelau, Agamémnon (seu irmão) parte para Tróia com mil naus, através do mar Egeu, encetando a famosa Guerra de Tróia com vista à conquista do seu território. A seu lado leva Ulisses, Guerreiro diplomata da narração e Aquiles, o maior dos maiores entre os poderosos guerreiros para o ajudarem em tal empresa. Páris morre na guerra, Helena volta para a Grécia com Menelau e Ulisses regressa sozinho, 20 anos depois conforme Odisseia de Homero.
De facto, se há história na história da Literatura Ocidental, que conta a história das histórias é a Odisseia de Homero, bem como a Elíada. E se, de entre todos os episódios retratados, há episódio importante que perdura na nossa memória, é o episódio da Guerra de Tróia. Provavelmente por isso, recentemente o realizador Americano decidiu pô-lo em filme, para nele destacar a personagem mítica de Aquiles – O Guerreiro dos Guerreiros. Neste filme, Helena, Páris e Ulisses (sobretudo) são figuras completamente secundárias. Contudo, a minha paciente, mulher letrada, com conhecimento suficiente para saber o que conta realmente a Odisseia, bem como o Filme de que se fala, reconta-me ambos desta forma tão maravilhosa quanto fantástica.

M. conta-me a sua história, na sua re-invenção da de Homero o que, desde logo, me leva a surpreender consigo mais uma vez e a sorrir. Arrisco-me a dizer que, tão magnânime e poderosa quanto a obra de Homero, é esta re-invenção/criação/re-criação de M.
M. chegou até mim, há uns anos atrás, sem história. Chegou até mim como um facto e nessa condição, nem M. nem ninguém tem espaço interior onde possa caber, fazer circular, desenvolver, re-criar qualquer história. O Regresso, como o de Ulisses, ía ser tempestuoso, incerto, perigoso, todavia ambas, como uma só Penélope, aguardámos pacientes, tecendo aqui e ali alguns pontos mal amanhados com as pontas de linha que vagarosamente foram aparecendo no seu discurso, soltas, aparentemente sem nexo, sem cor ...Como facto que era – e era assim que se sentia, qual borboto numa camisola de lã verde garrafa, usada até à exaustão – M. pedia-me sem voz que lhe inventasse uma qualquer história onde ela pudesse existir, tornando-se compreensível para que, compreendida se pudesse, enfim, compreender.
“Não sei se tem algum preconceito especial relativamente à homossexualidade, mas eu acho que sou lésbica, pelo menos tenho sido até aqui, e neste momento estou em ruptura com uma relação que tenho há algum tempo e isso está-me a pôr mal. Não sei se é pela ruptura, não sei se sou lésbica ou não. Gostaria de perceber isso ... estou confusa!” Preconceito eu? Não! Sou como Aquiles, poderosa, gerreira, protegida pelos deuses ... não fosse o calcanhar! Adiante.
Quis conhecê-la, saber quem era, de onde vinha, o que fazia, o que pensava, o que sentia. Quis recebê-la no meu espaço que hoje (na mesma sessão de onde parti de início) ela compara a uma lojinha de Lisboa, pequenina, cheia de bujigangas engraçadas, gerida por uma senhora que a desenrasca sempre por altura do Natal quando tem de comprar os presentes para oferecer à família e aos amigos.
“O Natal está aí de novo e eu ainda não fiz as compras. Mas hoje à tarde vou a uma lojinha pequenina que há em --- ver umas coisas. Todos os anos lá vou e entrego-me nas mãos da senhora – ela safa-me sempre. Tem lá umas coisas muito engraçadas, diferentes, e arranja-me sempre coisas giras para eu oferecer. Como ela viaja muito, tem sempre objectos muito originais.” Então e você, já fez os seus pedidos de natal? “Não. Este ano não estou lá muito animada. A minha mãe já me comprou uma peça de vestuário - diz ela que, com design - , de uma estilista americana. Vamos a ver o que sai dali. E a minha irmã queria dar-me um filme e perguntou-me se queria o Kill Bill ou o Tróia – devem estar em promoção numa loja qualquer por aí. Eu disse que preferia o Tróia. O Kill Bill não gostei muito. Fui ver ao cinema com uma amiga minha, mas nem chegámos a ver todo porque a minha amiga teve que sair a meio. Aquilo é muito pesado, começa logo com uma mulher a ser violada quando está em coma. E depois, a certa altura há um tipo que manda uma faca e espeta a faca no pé da mulher ... é só sangue por todo o lado. A Teresa não aguentou e teve de sair para ir vomitar, e eu fui com ela.”

Pois claro. Como eu compreendo a Teresa. Na verdade, o Kill Bill não é um filme que se preze até porque não nos dá a possibilidade de re-inventarmos a sua história. O Kill Bill é um facto, é demasiado real para ser reinventado. Mas o mais importante é que conta uma parte da história de M.. Também ela foi abusada sexualmente quando menina, quando ainda sem defesa (como que, em coma; acontecimento esse, que por sua vez a colocou em estado de coma mental). Da mesma forma que neste dia referiu o filme Kill Bill apenas de passagem, me contou num outro, em surdina, que isso tinha acontecido a uma outra Teresa da sua vida. “Na altura aquilo desencadeou um escândalo no bairro e o professor foi despedido. Ele meteu-se com várias meninas, mas eu nunca falei disso a ninguém.” Pelos vistos, também nunca ninguém to perguntou, não é verdade?

Creio que te entendo bem M., e à tua escolha – o Tróia. No momento em que te encontras, só podia ser essa a tua escolha. “Não percebo. Lá está a Drª a viajar outra vez, já estou a ver.” Sorrimos enquanto nos predisposémos a tecer mais um pouco da nossa tela, repegando nas laçadas que por vezes ficam apenas entre os dedos doridos, mas que aos poucos vão tornando clara a montanha do desenho que projectámos antes. “De vez em quando a Drª faz pr’ai uns filmes. Já vi que hoje está inspirada.” Eu apenas sigo o seu discurso. Se lhe parece que sou eu que invento as histórias, está enganada. Ou então, ainda não percebeu que quem me dá a matéria prima é você. “Eu sou apenas um rato. Não tenho criatividade para inventar nada. Você é uma montanha.” É evidente que M. está enganada em relação a si mesma, e a mim. Quem? Que rato, seria capaz de tão habilmente transformar, re-inventando, a lenda de Helena de Tróia? Ela é por demais conhecida, e ainda que tenha algumas diversas interpretações, há elementos que perduram e, nesses termos, se constituem em invariantes, porque invariáveis. Mas, talvez M. tenha alguma razão. O material é dela, o processador tenho sido eu. Mas, neste dia, quem de facto re-contou a lenda foi ela. Por isso, foi ela a montanha verdejante que cabe no nosso projecto.
Aos meus olhos, M. fora naquele instante assumidamente uma montanha por inteiro. Uma montanha mental. Uma montanha que, como todas as montanhas do nosso imaginário, são grandes, altas, verdejantes, fertéis. M. foi Mente naquele instante. Mente capaz de pensar. Deixou de ser rato, borboto, facto. Revelou-se Gente. E a Gente tem história, tem identidade, tem voz.

Como referi no início deste texto, existiam imprecisões de dois tipos na re-invenção de M. A primeira de carácter histórico, corresponde nada mais nada menos, à integração (revelada) da sua própria história interior. Até aqui, M. passou da que se assumia sem história, para a que olha o mundo (o seu e o dos outros) apenas por um buraquinho da persiana, que em segredo (até para si mesma) manteve aberta ao longo da sua vida, mas que, como me disse num outro dia, fechava quando o que via não lhe agradava. O mesmo tem feito com o que sente ser a nossa relação dentro de si – um espaço que a devolve a si mesma, na recuperação de quem foi e que dita quem é hoje; um espaço que conta uma história que lhe parece ainda, por vezes, irreal, mas apenas porque nova na forma ( não no conteúdo); um espaço de criação/re-criação de si, que lhe permite o resgatar de uma outra que convictamente esqueceu, mas que afinal até podia ser a Bela Helena de Tróia.

A segunda imprecisão foi de carácter identitário. Se é comummente aceite que os ratos não pensam, menos ainda os borbotos, mais certo é, que só as montanhas parem. Porém, ninguém pare sem ser parido e M. em vez de ter sido parida, foi parido.
“ Eu sempre gostei de coisas diferentes das minhas irmãs, mas a minha mãe nunca me deu grandes largas para as fazer. Gostaria de ter estudado música, adoro as óperas de Wagner. Quando andava a estudar ouvia o Anel dos Nibelungos de seguida, vezes sem conta. Eu fazia puzzles, jogos com Legos...sempre fui considerada rebelde..” Pois, queria coisas capazes de estimular a imaginação, a criatividade e de fomentar a dimensão relacional que em si apetecia. Mas, fazia coisas de rapazes.
Por ocasião do meu aniversário, algum tempo antes desta sessão que aqui me serve de mote, M. trouxe pela primeira vez um presente para mim – um livro, o seu preferido, de Thomas Mann: “As cabeças trocadas”. Queria muito que eu o lesse, pois segundo ela, continha uma chave que me iria ajudar a decifrar algo mais do seu enigma interior. Li-o . Mais tarde, perguntou-me o que tinha achado e eu, é claro, esperava que me desse a chave.
“Acho o livro muito interessante, agradeço-lhe que o tenha lido pois nunca o dei a ninguém. Acho que não iriam gostar dele e menos ainda iriam perceber porque me diz tanto. É uma dissertação sobre o amor, as relações humanas, há um triângulo amoroso e um filho que tem um handicap.” Cá estava a chave de que me falara. O filho que tem um handicap. M. também nasceu com um handicap. Faltava-lhe qualquer coisa que era muito importante para que fosse aceite e amada pela sua mãe – “Eu se calhar era para ter sido um menino. A minha mãe já tinha duas filhas. Eu já vim fora do tempo, e ela queria um menino”. Que troca imperdoável. O que fazer agora com o corpo e a cabeça? Afinal o que é que define uma pessoa? O corpo que tem, ou a cabeça? Thomas Mann trata o assunto com mestria, e por isso, resta-me agradecer a M. por mo ter dado a ler.

Quanto ás questões que me coloca também não sei responder, todavia sei que M. é uma montanha/mente parideira, como tal é um ser humano- Mulher. Fica com isto explicada a imprecisão identitária em questão. M., ao dar protagonismo a Helena e não a Aquiles, a propósito do filme Tróia, está porventura a dar-se a si mesma o papel que quer ter no filme da sua vida. Ela é uma mulher e não um homem e é também mais humana que Aquiles. “Quero desmistificar a minha história e a minha identidade”, foi o que ouvi que me disse nesta sessão. Considero que está em parte desmistificada, na mesma medida em que um qualquer mito, tem tanta consistência para perdurar, quanto pode ter de morto e mortificante, porque estanque. No momento em que M. re-inventa a lenda de Helena, resgata, revela e re-integra a força mental viva que é. Expande, usa e re-cria, o espaço interior onde existe e onde tem nome. Traduz o acontecer da nossa relação dentro de si, num reconhecimento profundo da janela aberta em que se constitui e que lhe permite respirar/repousar do novo parto mental (não anunciado ainda com o choro) de que procede.

“Este ano, para o natal, não tenho grandes pedidos. Deixei escapar apenas que não me importava que me dessem uma caneta daquelas para o computador. A minha não funciona lá muito bem. Mas de resto ...” Uma pen-disc, portanto. Vamos de férias M. Depois vemos isso da pen-disc pode ser?

3 Comments:

Blogger Jorge Ferreira said...

A tua profissão é um jogo permanente, ainda bem que gostavas de fazer puzzles e legos em pequena, caso contrário seria difícil...

Belo texto lol ;-)

15:14  
Anonymous Anónimo said...

Li o texto, duas vezes.

Uma narração humana, soberbamente escrita e, que foca a identidade de uma pessoa que se quer definir.

A mestria da envolvência, com os personagens históricos, é de realçar.

Gostei da forma como foi descrita...

Agradeço a visita e as palavras no meu blog.

Abraço :-)

21:35  
Blogger r.e. said...

Por alguma razão os mitos se eternizam...
Não fosse o lençol subliminar do sentido último de ser humano percorrer as franjas do tempo, e o mito seria apenas sonho de poucos para prazer de alguns. Na compreensão lúcida do que habita sob os mantos da consciência, reinventas a mitologia analítica também. a psicanálise precisa de se humanizar para percorrer o tempo que ainda aí vem. e alguém, a ver pelo brilho do texto, terá o olhar iluminado para o fazer. beijinho. J.

11:34  

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