A Confeitaria.
Do outro lado da praceta, em frente ao quiosque dos jornais da Maria, está o lugar do descanso, dos prazeres indiscretos do palato, da observação descomprometida do meu olhar. A Confeitaria.
De manhã, à tarde ou de noite não deixo de lá passar para recolher o rissol que vem marcado todos os dias para mim - marcado porque é o único que traz dois camarões lá dentro - e que o Senhor Silva guarda religiosamente num pratinho até que eu chegue. Todos os dias lá vou, todos os dias tomo um café com um rissol, todos os dias encontro lá o Senhor Silva à minha espera com o seu sorriso elegante, cavalheiresco e sedutor, que me faz projectá-lo no passado e imaginá-lo como um verdadeiro homem galante. Foi-o certamente. Disso não restam dúvidas. É-o ainda, apesar dos seus 70 e tantos anos.
Gosto do Senhor Silva e das histórias que todos os dias me conta da sua vida. Os tabefes que o avê lhe deu por ser filho de uma portuguesa. "Dizia-me que se via logo que eu só podia ter uma mãe portuguesa, porque nem pedir sabia!" Eu sorrio para ele, na esperança de que, do outro lado do balcão, ele entenda que eu o admiro e que, de alguma maneira, sou sua fã, sua pretendente, sua amante.
Arrasta os pés já, que o corpo não perdoa a idade nem a esconde. Demora que se farta a trazer o café à mesa, mas não sei lá porquê, eu ali nunca me sinto com pressa de coisa nenhuma. A única urgência que me assalta é sempre a mesma: Senhor Silva, não se esqueça do meu café!
Sei que com ele me trará mais um pedaço da sua vida que, sem dúvida foi escaldante, prazerosa, bem vivida.
Já foi um "cavaleiro da noite". Conheceu bares, restaurantes, casas de fado em Lisboa como a palma das suas mãos.
Já se cruzou com gente de todas as formas e feitios.
Já conquistou mulheres belas apenas com a forma como deliciosamente as beija com o olhar.
Já andou descalço a saltitar nas poças enlameadas.
Já chorou com dores de barriga por se ter excedido nas amoras silvestres que comeu junto ao poço que havia perto de sua casa.
Já se banhou nú no mar salgado de Aveiro.
Já se constipou a valer.
Já cortou o lábio superior quando a mão lhe tremeu a fazer a barba. E depois, pôs um penso rápido que durou dias no mesmo lugar, enfeitando-lhe o rosto. Andou mascarado com um bigode cor de mel.
Já foi atrevido com as moçoilas da sua aldeia.
Já andou à pancada por se ter atrevido demais com a namorada do chefe do grupo do seu bairro.
Já se casou, teve filhos e netos.
Já viajou pelo mundo; já comeu caldeiradas de peixe fresco que comprou de madrugada directamente aos pescadores.
Já bebeu hoje 7 cafés. "Senhor Silva, olhe o seu coração"; "Sabe que um dia uma cigana me disse que eu ia viver tanto quanto o meu avô. Qual deles, perguntei-lhe eu? Ela não soube responder, mas era mesmo importante eu saber, sabe? É que um deles, morreu aos 100 anos, e o outro, aos 106". Rimos com gosto!
Só mesmo o Senhor Silva.
A Dona Luísa é uma velhinha com 80 anos já feitos, como ela diz, linda de morrer.
É baixinha e gorducha, à boa maneira portuguesa, tem os cabelos branquinhos cravejados de anéis delicadamente enrolados uns nos outros, que fazem da sua cabeça uma corôa de pérolas, maravilhosa.
Tem as pernas em X o que lhe dificulta o andar, mas ela não se importa pois comprou uma perna extra, que lhe faz imensa companhia e a transporta para onde quer.
O dinheiro para o café, trá-lo no bolso do casaco de malha, já meio borbotoado, mas que é o seu prefrido. É muito quentinho, já dura há anos e o Inverno não tem estado para brincadeiras.
Gosta de ver as novelas da SIC, particularmente esta recente da "Maria do Carmo". Ouço-a contar as cenas do dia anterior às amigas com as quais se reúne todos os dias por volta das 16h. Sentam-se na mesa do canto, junto à janela. Têm vista para a rua o que convém. Costumam ser 4.
As outras senhoras são fãs das novelas da TVI, mas nenhuma delas se perde nem perde as histórias uma vez que cada uma conta, em sucessão, às outras, as cenas mais interessantes. Acompanham-nas todas portanto, em conjunto.
Moram sózinhas já. Os filhos partiram e os maridos também. Os netos aparecem de vez em quando. Têm as suas próprias vidas. Alguns são doutores, por isso, o orgulhos das avós.
As lembranças da vida que já tiveram seguem-se ao relato das novelas. Eu escuto-as com ternura. Adoro ouvi-las falar umas com as outras. Estamos entre mulheres.
Os partos que foram em casa, terríveis. As várias cores das menopausas que já lá vão. Os sacrifícios que fizeram, em tempo de Guerra e de fome, para criar os filhos. As bisbilhotices acerca da vida da vizinha que mora ao lado, e que, pelos vistos, não tem juízo nenhum. "Este mundo já não é o que era dantes. Dantes, comprava-se um prato de carapaus frescos por meio tostão; comiam-se sardinhas de barrica com batatas cozidas que era de chorar por mais; uma sardinha dava para três e a gente nem refilava. Aquilo sabia que nem ginjas. Hoje a rapaziada não sabe o que é viver. Tem tudo e deita tudo fora".
Concordo com elas. Não deixam de ter razão.
A dona Luísa é a matter do grupo. É a mais velha e a mais bonita. Tem um encanto natural, uma simpatia nunca vista, uma delicadeza feminina atroz, a sabedoria que me falta por ser tão mais jovem.
Cumprimento-as todos os dias na Confeitaria, e há pouco tempo não pude deixar de me meter com elas de forma mais descarada. Queria participar da conversa. Que me contassem as suas histórias. Revejo-me no futuro delas; gostaria que se revissem na minha juventude. São deliciosas. Bem hajam Senhoras. E a Dona luísa em especial.
De manhã, à tarde ou de noite não deixo de lá passar para recolher o rissol que vem marcado todos os dias para mim - marcado porque é o único que traz dois camarões lá dentro - e que o Senhor Silva guarda religiosamente num pratinho até que eu chegue. Todos os dias lá vou, todos os dias tomo um café com um rissol, todos os dias encontro lá o Senhor Silva à minha espera com o seu sorriso elegante, cavalheiresco e sedutor, que me faz projectá-lo no passado e imaginá-lo como um verdadeiro homem galante. Foi-o certamente. Disso não restam dúvidas. É-o ainda, apesar dos seus 70 e tantos anos.
Gosto do Senhor Silva e das histórias que todos os dias me conta da sua vida. Os tabefes que o avê lhe deu por ser filho de uma portuguesa. "Dizia-me que se via logo que eu só podia ter uma mãe portuguesa, porque nem pedir sabia!" Eu sorrio para ele, na esperança de que, do outro lado do balcão, ele entenda que eu o admiro e que, de alguma maneira, sou sua fã, sua pretendente, sua amante.
Arrasta os pés já, que o corpo não perdoa a idade nem a esconde. Demora que se farta a trazer o café à mesa, mas não sei lá porquê, eu ali nunca me sinto com pressa de coisa nenhuma. A única urgência que me assalta é sempre a mesma: Senhor Silva, não se esqueça do meu café!
Sei que com ele me trará mais um pedaço da sua vida que, sem dúvida foi escaldante, prazerosa, bem vivida.
Já foi um "cavaleiro da noite". Conheceu bares, restaurantes, casas de fado em Lisboa como a palma das suas mãos.
Já se cruzou com gente de todas as formas e feitios.
Já conquistou mulheres belas apenas com a forma como deliciosamente as beija com o olhar.
Já andou descalço a saltitar nas poças enlameadas.
Já chorou com dores de barriga por se ter excedido nas amoras silvestres que comeu junto ao poço que havia perto de sua casa.
Já se banhou nú no mar salgado de Aveiro.
Já se constipou a valer.
Já cortou o lábio superior quando a mão lhe tremeu a fazer a barba. E depois, pôs um penso rápido que durou dias no mesmo lugar, enfeitando-lhe o rosto. Andou mascarado com um bigode cor de mel.
Já foi atrevido com as moçoilas da sua aldeia.
Já andou à pancada por se ter atrevido demais com a namorada do chefe do grupo do seu bairro.
Já se casou, teve filhos e netos.
Já viajou pelo mundo; já comeu caldeiradas de peixe fresco que comprou de madrugada directamente aos pescadores.
Já bebeu hoje 7 cafés. "Senhor Silva, olhe o seu coração"; "Sabe que um dia uma cigana me disse que eu ia viver tanto quanto o meu avô. Qual deles, perguntei-lhe eu? Ela não soube responder, mas era mesmo importante eu saber, sabe? É que um deles, morreu aos 100 anos, e o outro, aos 106". Rimos com gosto!
Só mesmo o Senhor Silva.
A Dona Luísa é uma velhinha com 80 anos já feitos, como ela diz, linda de morrer.
É baixinha e gorducha, à boa maneira portuguesa, tem os cabelos branquinhos cravejados de anéis delicadamente enrolados uns nos outros, que fazem da sua cabeça uma corôa de pérolas, maravilhosa.
Tem as pernas em X o que lhe dificulta o andar, mas ela não se importa pois comprou uma perna extra, que lhe faz imensa companhia e a transporta para onde quer.
O dinheiro para o café, trá-lo no bolso do casaco de malha, já meio borbotoado, mas que é o seu prefrido. É muito quentinho, já dura há anos e o Inverno não tem estado para brincadeiras.
Gosta de ver as novelas da SIC, particularmente esta recente da "Maria do Carmo". Ouço-a contar as cenas do dia anterior às amigas com as quais se reúne todos os dias por volta das 16h. Sentam-se na mesa do canto, junto à janela. Têm vista para a rua o que convém. Costumam ser 4.
As outras senhoras são fãs das novelas da TVI, mas nenhuma delas se perde nem perde as histórias uma vez que cada uma conta, em sucessão, às outras, as cenas mais interessantes. Acompanham-nas todas portanto, em conjunto.
Moram sózinhas já. Os filhos partiram e os maridos também. Os netos aparecem de vez em quando. Têm as suas próprias vidas. Alguns são doutores, por isso, o orgulhos das avós.
As lembranças da vida que já tiveram seguem-se ao relato das novelas. Eu escuto-as com ternura. Adoro ouvi-las falar umas com as outras. Estamos entre mulheres.
Os partos que foram em casa, terríveis. As várias cores das menopausas que já lá vão. Os sacrifícios que fizeram, em tempo de Guerra e de fome, para criar os filhos. As bisbilhotices acerca da vida da vizinha que mora ao lado, e que, pelos vistos, não tem juízo nenhum. "Este mundo já não é o que era dantes. Dantes, comprava-se um prato de carapaus frescos por meio tostão; comiam-se sardinhas de barrica com batatas cozidas que era de chorar por mais; uma sardinha dava para três e a gente nem refilava. Aquilo sabia que nem ginjas. Hoje a rapaziada não sabe o que é viver. Tem tudo e deita tudo fora".
Concordo com elas. Não deixam de ter razão.
A dona Luísa é a matter do grupo. É a mais velha e a mais bonita. Tem um encanto natural, uma simpatia nunca vista, uma delicadeza feminina atroz, a sabedoria que me falta por ser tão mais jovem.
Cumprimento-as todos os dias na Confeitaria, e há pouco tempo não pude deixar de me meter com elas de forma mais descarada. Queria participar da conversa. Que me contassem as suas histórias. Revejo-me no futuro delas; gostaria que se revissem na minha juventude. São deliciosas. Bem hajam Senhoras. E a Dona luísa em especial.
2 Comments:
Uma confeitaria Portuguesa concerteza...
Sorri e chorei a ler este texto,
realmente é delicioso quando nos apercebemos da beleza dos idosos, daqueles que envelhecem tranquilos...
Até falaste nas sardinhas para três,
felizmente o tempo da fome já passou,
mas infelizmente a vontade de deixar de a ter também passou.
Foi magnifico este texto minha Amiga, vejo que estás mesmo desperta para a vida.
Um Abraço.
Como se pode comentar um texto que encerra sensibilidade e grandeza, simultaneamente?
Deixo-te um abraço, porque me deixaste sem palavras...
;-)
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