Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

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Localização: Lisboa, Portugal

Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

domingo, junho 05, 2005

A Confeitaria II

No largo desembocam ruas compridas, íngremes, algumas – daquelas que, quando subidas a pé, nos deixam as barrigas das pernas a trautear canções. A zona é antiga. As casas vêm do século passado e do anterior. Janelas pequeninas e muitas. As sardinheiras, essas, abundam noutros lugares. Lá, abundam as gentes dali. Os cafés, restaurantes e pastelarias não são muitos, e poucas são “grande coisa” cá para mim.

Numa dessas ruas está a pastelaria de cima. Cheira a bolos feitos na hora e a pães de todos os feitios amassados para além da porta que a gente vê do balcão. Do balcão também se vê o peito peludo e gordo do dono que nos atende de pano da loiça ao ombro. Tem sobrancelhas grossas, ar de que toma banho de vez em quando, nunca olha de frente para ninguém. As mesas são pequenas e velhas e sujas e as cadeiras não teriam espaço suficiente para a D. Luísa se sentar – onde poria a sua companheira de passeios?
Não me alenta ir à pastelaria de cima, até porque, quando isso acontece é sinal de que a Confeitaria está fechada. De férias. Em mudanças. De folga. Ou, fui eu quem chegou cedo demais.

A lá de cima tresanda a desumano ainda que o cheiro a bolos apeteça até aos mais cépticos quanto aos prazeres do palato.

Mais abaixo fica o “grandioso”. Um espaço diminuto, atarracado para tanto verde e rosa.
O raio das cores!
Pães com omeletes variadas enfiadas lá dentro a espreitar, panados com cara de 15 dias e sumos de garrafa, almoços aos montes. Ninguém conversa com ninguém, porque o verde e rosa não deixa e a verdade é que o lema da casa é comer e andar. A ementa aparece diariamente à porta, escrita numa toalha de mesa daquelas de papel branco aos quadradinhos, mal rasgada. Adiante!

Ao meio da rua está o rio. Quer dizer, o restaurante com nome de rio. Qual? Não me lembro agora, até porque, na verdade fui lá apenas uma vez em busca de um apregoado café que me disseram ser o melhor das redondezas. Eu nem me lembro do nome do rio, nem tão pouco do gosto que tinha o café. Sei apenas que o homem de barbas que é o seu proprietário me olha sempre como quem vê uma bola de Berlim apetitosa à hora do pequeno almoço ou do lanche.

Todos os dias chego ao largo da Confeitaria e depois de estacionar o malvado do carro que teimosamente parece nunca caber em lado nenhum, vou comprar os meus cigarros finos e dar dois dedos de conversa com a Suzy – a da papelaria.
Eu e a Suzy falamos de perfumes dia sim dia sim, e de perfumes todos os dias. A Suzy é simpática e sabe sempre que eu já cheguei. Conhece-me pelo cheiro. Parece tomar contacto com ele, desde que eu chego ao largo. (Mas, eu juro que não me banho em perfume!) Até amanhã Suzy. E já agora, vê lá se adivinhas qual foi o que comprei ontem?

A experiência requer uma certa preparação, e é por isso que percorro a rua e vou aos cigarros primeiro, antes de entrar na Confeitaria. Inspiro as flores que não cabem na loja da senhora florista, que é uma compradora compulsiva de material natural, e decoram gratuitamente o empedrado da calçada.

Chego. Entro.

- Bom dia, Bom dia, Bom dia!
- Como está a senhora? Vem muito bonita hoje. Vai o rissolinho e um sumo de maracujá?
- Oh Senhor Silva, quer-me cá parecer que o raio do sumo não anda a ter saída nenhuma. Já viu quantos sumos de maracujá eu bebi esta semana? Rimos.
- Então e as senhoras como estão hoje? A D. Luísa não vem?
- Nós bem e a senhora. A Luísa vem mais logo. Ficou a ver o cão polícia. Ela gosta muito de ver aquilo.

Sento-me.

Hoje falam das marchas populares, que já estão prontinhas para o desfile. Defendem o bairro que é o delas há anos. Contam-me as suas aventuras de quando também foram marchantes, e orgulhosamente se mostraram e foram felizes. Brilharam. Ganharam e perderam.
Entra e sai gente. Muita gente por vezes. Dias há em que não entra nem sai ninguém.
Nós estamos lá sempre.
O negócio tem fases. A crise aperta. As prateleiras estão meio cheias, tenta-se fazer de tudo para não fugir dali para fora e ir pedir trabalho noutras paragens. Às vezes os queques são de ontem e já estão secos. Também já não há pão quando lá chego. Hoje não se fez muito para não sobrar. O que se fez já foi.
- Oh Diabo! O que é que eu como então Sr. Silva?
- Sente-se aí que eu já lhe arranjo uma surpresa. Vai ver que vai adorar.

Sinto-me em casa.

Mas, afinal de quem é a responsabilidade de tudo isto?
É do tipo jovem e alegre e brincalhão como eu, que é o “manda chuva” lá do estabelecimento. Recebe-nos a todos, todos os dias, com um sorriso. Ás vezes, não se percebe o que diz. Perdeu a voz a gritar pelo Benfica. Conhece os nossos nomes. Os nossos segredos. Desvela-os por vezes, sem que o queiramos. Já lhe disse uma vez que podia montar uma banquinha de adivinhação ao lado da mulher dos jornais. Ele riu-se. Eu também.

- Você hoje não está nos seus dias. Você hoje vem triste. O que é que lhe aconteceu?
- Deixe-se disso e traga lá o café que eu hoje estou com pressa.

Será talvez a humanidade daquele lugar que me encanta. O olhar brilhante de todos nós, uns para com os outros, a cada reencontro. O sorriso do “manda chuva”, o seu olhar de malandro, que me devolve à adolescência perversa, deslumbrante. A amplitude do espaço que me acolhe e me deixa esbracejar livremente todos os dias. Converso que me desunho. Esqueço-me dos minutos que ali passo. Tenho a impressão de que quando lá estou, o tempo se dilata, e eu fico mais calma, mais preparada para regressar ao meu trabalho estonteante.

1 Comments:

Blogger r.e. said...

Sentimo-nos aqui, cada vez mais, como tu entre os lugares mágicos que te dizem que és gente, que és a pessoa que sabes que és. É muito bom quando nos apercebemos que os outros também vêem que o somos. E que só o viram porque nos demos ao luxo de os olhar um pouco também. Beijnho grande, com muito carinho no olhar. J.

20:25  

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