A Formatação das Almas
Ontem, Domingo de Páscoa, voltei mais uma vez ao Templo.
O forte cheiro a incenso anunciou a entrada do cortejo encabeçado por aquele que, naquela cidade beirã, pretende equiparar-se a Jesus Cristo, sendo o porta voz da sua mensagem de Amor. Atrás de si, em fileira ordenada, os súbditos cabisbaixos, de olhos postos no chão em sinal de respeito e de fé, levando ao colo as crianças que, sendo sua propriedade, propunham ao Baptismo Sagrado que proporcionará aos petizes uma vida livre do Pecado Original, e lhes garantirá protecção divina para a eternidade.
A Igreja estava cheia. Havia gente de pé.
Homens, mulheres e crianças tinham vestido as suas melhores roupas. Alguns tomaram banho. Todos se levantaram cedo para naquele dia estarem presentes no anúncio mais aguardado de sempre. A hora estava marcada há muito. O “Senhor” não os cumprimentou sequer, mas todos lhe prestaram homenagem fazendo vénias constantes. Enquanto se entoavam cânticos de Glória, supostamente alegres e festivos, eu olhava em meu redor e via rostos de olhar cansado, gente triste, lacrimejante, doentes alguns, pobres e velhos. Todos pareciam saber muito bem o que cantar e o que dizer e quando e como. Igualmente, todos sabiam bem quando deviam estar de pé e quando podiam descansar sentados. Ninguém conversava ou sorria. Ninguém parecia ouvir ou estar interessado na mensagem que lhes era dirigida. Talvez a mensagem não importe tanto assim. Talvez baste confiar e reproduzir na perfeição as palavras que estão já determinadas que entoem em coro, nas alturas certas. Assim, ninguém faz má figura. Todos são vistos por lá. Ninguém dá lugar a comentários menos dignificantes na rua onde moram. Todos pertencem ao rebanho. Ninguém está ou fica de fora. Todos são pessoas de bem.
Eu não estava na minha terra. Fui lá a convite de amigos e, talvez por isso, não me senti dentro nem fora. Simplesmente não era dali. Portanto, não sabia antecipadamente o que dizer ou fazer, pelo que me limitei a ser educada e respeitar em silêncio o que ali se passava. Mas, talvez por não ser aquela a minha terra nem a minha gente, esforcei-me por ouvir o que tanto os mobilizava e os sintonizava tão bem a todos, como se de um só se tratasse.Falava-se então da Ressurreição de Cristo. Leram-se os textos bíblicos que dão conta desse episódio fantástico jamais presenciado por algum humano conhecido, mas que, ao que parece, era afinal o motivo de tanta gente. Era o “segredo” revelado naquele dia. Ninguém viu nada, mas todos confirmaram; ninguém questionou nada, mas todos afirmaram que sabiam que era verdadeiro o seu conteúdo; ninguém rejubilou de alegria (e a mim pareceu-me que podia ser motivo para tanto, no mínimo), mas todos exaltaram quem lhes desvelou tal verdade. Porém, quem lhes disse que sabia era um senhor de vestes brancas, já grisalho é certo, mas que, para sábio não tinha barbas pontiagudas como era suposto, e a mim, ficou-me a dúvida se alguém realmente o conhecia bem. Falou de forma arrogante, pretenciosa, ameaçadora no tom de voz com que se dirigia à plateia. Alertou vezes sem conta para que acreditassem sem questionar ou duvidar no que lhes acabava de dizer, frisando com clareza, que todo aquele que arriscasse noutro sentido, seria severamente castigado.
Seguiram-se os baptismos das crianças, inocentes aos meus olhos, mas ali já pecadoras. A água para tal efeito, derramou-a o tal senhor pelas cabeças abaixo, num acto de pretensa purificação divina. Sempre achei que o baptismo era uma espécie de confirmação do nome de cada um, do elemento que confere a cada qual uma identidade capaz de ser inscrita no mundo social a que pertencemos. Mas, no Domingo, e de forma ligeiramente diferente do que já tinha pensado antes sobre o assunto, outra ideia me ocorreu: na verdade, aquele baptismo não pretende conferir nome a ninguém, mas antes, permitir que até os mais pequenos fiquem desde cedo a saber também. A conhecer a verdade suprema.Diz o povo sabedor que é de pequenino que se torce o pepino. Resta saber qual pepino, mas isso agora também não importa muito. O que parecia interessar a todos os que ali estavam presentes, era que aquelas crianças se iniciassem cedo na aprendizagem da lengalenga que todos já trauteiam de cor, e que também desde cedo façam dela a sua voz. Isto é, uma voz que os “defende” da perdição eventual em que podiam cair se se atrevessem a calcorrear os caminhos florestais da curiosidade. Os caminhos perigosos da dúvida, das incertezas, da liberdade de procurar saber por se saber que não se sabe.
As malhas da liberdade de pensamento, ao que parece, comportam naquele contexto o perigo maior de todos. “Não queremos cá dissidentes; não gostamos de vozes dissonantes”.
A certeza da morte, da finitude da vida, é sem dúvida o pecado maior. Apercebi-me de que, naquele lugar, jamais alguém poderá dizer: eu morrerei! Naquele lugar o Eu não tem lugar. Não existe. Apenas o Nós e o Ele. Supostamente, era o dia da renovação da mensagem de Cristo. Uma mensagem de Amor. Mas eu não vi Jesus por ali, assim como também não dei conta de que houvesse lugar ao Tu.
E sem um Eu e um Tu, não me parece que haja Amor, nem vida, nem verdade alguma.
“Queremos almas formatadas. Queremos gente sem mente. Queremos o vosso pagamento pelo segredo desvendado. Queremos que venham sempre à mesma hora, sem faltas, sem desculpas, sem preguiças. Queremos que sejam servos do “senhor” (o das vestes brancas com certeza!). Queremos que queimem os livros malditos. Queremos que se reneguem todos os dias e que batam na boca mil vezes, quando tiverem alguma coisa a dizer. Falaremos por vós, e nada tereis a temer, porque a vida é eterna, e sobretudo, é para viver noutro lugar, e um dia destes.”
Revi os meus amigos, conheci gente nova o que sempre me apraz. Redescobri que estou viva, que amo, e que enquanto ser vivo (mortal) e amante dos outros, não posso desculpar a mentira.
O forte cheiro a incenso anunciou a entrada do cortejo encabeçado por aquele que, naquela cidade beirã, pretende equiparar-se a Jesus Cristo, sendo o porta voz da sua mensagem de Amor. Atrás de si, em fileira ordenada, os súbditos cabisbaixos, de olhos postos no chão em sinal de respeito e de fé, levando ao colo as crianças que, sendo sua propriedade, propunham ao Baptismo Sagrado que proporcionará aos petizes uma vida livre do Pecado Original, e lhes garantirá protecção divina para a eternidade.
A Igreja estava cheia. Havia gente de pé.
Homens, mulheres e crianças tinham vestido as suas melhores roupas. Alguns tomaram banho. Todos se levantaram cedo para naquele dia estarem presentes no anúncio mais aguardado de sempre. A hora estava marcada há muito. O “Senhor” não os cumprimentou sequer, mas todos lhe prestaram homenagem fazendo vénias constantes. Enquanto se entoavam cânticos de Glória, supostamente alegres e festivos, eu olhava em meu redor e via rostos de olhar cansado, gente triste, lacrimejante, doentes alguns, pobres e velhos. Todos pareciam saber muito bem o que cantar e o que dizer e quando e como. Igualmente, todos sabiam bem quando deviam estar de pé e quando podiam descansar sentados. Ninguém conversava ou sorria. Ninguém parecia ouvir ou estar interessado na mensagem que lhes era dirigida. Talvez a mensagem não importe tanto assim. Talvez baste confiar e reproduzir na perfeição as palavras que estão já determinadas que entoem em coro, nas alturas certas. Assim, ninguém faz má figura. Todos são vistos por lá. Ninguém dá lugar a comentários menos dignificantes na rua onde moram. Todos pertencem ao rebanho. Ninguém está ou fica de fora. Todos são pessoas de bem.
Eu não estava na minha terra. Fui lá a convite de amigos e, talvez por isso, não me senti dentro nem fora. Simplesmente não era dali. Portanto, não sabia antecipadamente o que dizer ou fazer, pelo que me limitei a ser educada e respeitar em silêncio o que ali se passava. Mas, talvez por não ser aquela a minha terra nem a minha gente, esforcei-me por ouvir o que tanto os mobilizava e os sintonizava tão bem a todos, como se de um só se tratasse.Falava-se então da Ressurreição de Cristo. Leram-se os textos bíblicos que dão conta desse episódio fantástico jamais presenciado por algum humano conhecido, mas que, ao que parece, era afinal o motivo de tanta gente. Era o “segredo” revelado naquele dia. Ninguém viu nada, mas todos confirmaram; ninguém questionou nada, mas todos afirmaram que sabiam que era verdadeiro o seu conteúdo; ninguém rejubilou de alegria (e a mim pareceu-me que podia ser motivo para tanto, no mínimo), mas todos exaltaram quem lhes desvelou tal verdade. Porém, quem lhes disse que sabia era um senhor de vestes brancas, já grisalho é certo, mas que, para sábio não tinha barbas pontiagudas como era suposto, e a mim, ficou-me a dúvida se alguém realmente o conhecia bem. Falou de forma arrogante, pretenciosa, ameaçadora no tom de voz com que se dirigia à plateia. Alertou vezes sem conta para que acreditassem sem questionar ou duvidar no que lhes acabava de dizer, frisando com clareza, que todo aquele que arriscasse noutro sentido, seria severamente castigado.
Seguiram-se os baptismos das crianças, inocentes aos meus olhos, mas ali já pecadoras. A água para tal efeito, derramou-a o tal senhor pelas cabeças abaixo, num acto de pretensa purificação divina. Sempre achei que o baptismo era uma espécie de confirmação do nome de cada um, do elemento que confere a cada qual uma identidade capaz de ser inscrita no mundo social a que pertencemos. Mas, no Domingo, e de forma ligeiramente diferente do que já tinha pensado antes sobre o assunto, outra ideia me ocorreu: na verdade, aquele baptismo não pretende conferir nome a ninguém, mas antes, permitir que até os mais pequenos fiquem desde cedo a saber também. A conhecer a verdade suprema.Diz o povo sabedor que é de pequenino que se torce o pepino. Resta saber qual pepino, mas isso agora também não importa muito. O que parecia interessar a todos os que ali estavam presentes, era que aquelas crianças se iniciassem cedo na aprendizagem da lengalenga que todos já trauteiam de cor, e que também desde cedo façam dela a sua voz. Isto é, uma voz que os “defende” da perdição eventual em que podiam cair se se atrevessem a calcorrear os caminhos florestais da curiosidade. Os caminhos perigosos da dúvida, das incertezas, da liberdade de procurar saber por se saber que não se sabe.
As malhas da liberdade de pensamento, ao que parece, comportam naquele contexto o perigo maior de todos. “Não queremos cá dissidentes; não gostamos de vozes dissonantes”.
A certeza da morte, da finitude da vida, é sem dúvida o pecado maior. Apercebi-me de que, naquele lugar, jamais alguém poderá dizer: eu morrerei! Naquele lugar o Eu não tem lugar. Não existe. Apenas o Nós e o Ele. Supostamente, era o dia da renovação da mensagem de Cristo. Uma mensagem de Amor. Mas eu não vi Jesus por ali, assim como também não dei conta de que houvesse lugar ao Tu.
E sem um Eu e um Tu, não me parece que haja Amor, nem vida, nem verdade alguma.
“Queremos almas formatadas. Queremos gente sem mente. Queremos o vosso pagamento pelo segredo desvendado. Queremos que venham sempre à mesma hora, sem faltas, sem desculpas, sem preguiças. Queremos que sejam servos do “senhor” (o das vestes brancas com certeza!). Queremos que queimem os livros malditos. Queremos que se reneguem todos os dias e que batam na boca mil vezes, quando tiverem alguma coisa a dizer. Falaremos por vós, e nada tereis a temer, porque a vida é eterna, e sobretudo, é para viver noutro lugar, e um dia destes.”
Revi os meus amigos, conheci gente nova o que sempre me apraz. Redescobri que estou viva, que amo, e que enquanto ser vivo (mortal) e amante dos outros, não posso desculpar a mentira.
2 Comments:
Adoro a parte: "liberdade de procurar saber por se saber que não se sabe."
Claro que adorei o texto todo, esse sentido de observação é clínico, como alias se previa.
Os rituais são assim, experiências onde o individuo não pode existir, apenas o grupo interessa.
Mas ao menos que seja um ritual alegre não é ? a Igreja católica é triste e cinzenta.
A minha irmã e o meu cunhado são pastores da Igreja Evangélica, eu já fui uma duzia de vezes à igreja deles com a minha mulher e a minha filha, lá ao menos cantam e tocam alegremente.
Fomos apesar de eu ser Ateu e a minha mulher Agnóstica, no entanto acho que é bom para a minha filha se ela conseguir acreditar, eu falo muito com ela, sempre com o objectivo de a obrigar a pensar pela própria cabeça, e não lhe metemos Deus na cabeça, mas talvez ela fique mais segura, mais feliz, com mais paz interior, se simplesmente acreditar...
Pelo menos a minha filha vai frequentar a Igreja, naquela acho que não lhe vão fazer nenhuma lavagem cerebral, pelo menos vou estar atento a isso.
Além disso vou transmitir-lhe os valores em que eu acredito, que é o pensamento, a mente, o coração, as pessoas.
O Budismo é a religião em que eu acreditava se tivesse de escolher uma, vou falar isto tudo a ela, depois a minha filha que acredite no que quiser.
Como Pai, tento envolver a minha filha de coisas positivas, coisas que eu acho mais seguras para ela, quando temos um filho, aquilo em que acreditamos é irrelevante o que interessa é o que será melhor para eles e isso é muito complicado...
parece q foste à terrinha onde cresci. na altura n pensava propriamente nesses termos mas pensava de forma(tação) parecida.
assim fosse fácil formatar computadores com XP.
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