Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

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Localização: Lisboa, Portugal

Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

sexta-feira, agosto 12, 2005

Uma história pequena.

Esta pretende ser uma história pequena.
Uma história composta por 4 miúdos + 1.
Eu explico.
Eram 4 miúdos, irmãos, todos seguidinhos uns aos outros. Alinhados, formavam uma escada humana quase perfeita, quer no que diz respeito às respectivas alturas, quer no que toca às suas idades.
Rapazes tristes.
Todos maltratados pela vida rude que tinham.
A casa era pequena para tanta gente. A comida falhava às vezes se bem que a pancada, essa, lhes fosse oferecida todo o santo dia, à sobremesa. Por vezes vinha até mais cedo, logo de manhã pela fresquinha, antes de irem para a escola.

Vi-os crescer da janela do meu quarto, isto é, sei que cresceram porque ainda hoje os revi a todos e pude observar que se mantiveram de pé. Alguns estão tão altos quanto pilares de ferro e betão, daqueles que sustêm os prédios modernos.
Outrora, padeciam de reumatismo precoce, alguns pareciam raquíticos, todos com ar adoentado.
Eram excelentes actores. Comoviam-me com a performance que constantemente mantinham, visando disfarçar a vergonha, a humilhação, a fome de afecto que sobejava dentro deles.

O então mais novo, tinha problemas com a aprendizagem escolar. Dizia-se. Aliás, todos eles eram fracos alunos e, por isso, todos vestiram cedo fatos de macaco e demais vestimentas de luxo, bem adornadas e macias. O pai não dispensava um bom whisky a seguir ao jantar. Fazia parte da tradição daquela gente.
Ajudei-o a ler melhor e a brincar com os jogos que eram do meu irmão e que ele nunca tinha visto. Não sei se era miopia. Não sei se era a atenção que lhe dedicava só a ele que o encantava. Hoje, brilharam-lhe os olhos mais uma vez quando me viu. Faz 18 anos. Parabéns. Estás tão crescido, ou será que fui eu que envelheci? Não importa muito pois não? Rimos.

Lembro-me que por vezes pedi à minha mãe para lhes dar algum do nosso leite. Talvez fosse a fraca qualidade do leite que bebiam a causa para que andassem sempre de olhos postos no chão como quem não aguenta mais e, contudo, acredita ainda que um dia alguém se lembrará deles.

A mãe não trabalhava porque o pai não queria que saísse de casa a não ser para se ir aviar de mercearias com o dinheiro contado, ou para ir lavar os alqueires de roupa aos tanques da aldeia. Era ir num pé e vir no mesmo que o jantar precisava de estar no prato à hora certa e o corpinho tinha que estar em forma para servir de ringue ao boxer profissional.

O estrondo ouviu-se no bairro. Era um tiro de caçadeira. As paredes ficaram manchadas de sangue e o tecto fez de bandeja ao manjar de miolos frescos. Matou-se.
Estava doente. Já não tinha força para bater tanto. Tinha de andar ao colo até para mijar. Nao aguentou, coitado!

Os rapazes choraram a sua morte. Era o pai deles. Compreende-se.
Hoje vi-os felizes a todos, e bem de saúde.
A eira em frente da minha casa de infância estava replecta de miudagem. As bicicletas levantavam a gravilha miúda no terreiro e espalhavam a areia que o vizinho tinha comprado para as obras. Ai, ai o vizinho!
O puto riu-se descaradamente. Falta-lhe ainda um dente na frente o que lhe dá um ar atrevido. Está bronzeado do sol por andar em tronco nú o dia inteiro, em cima da sua mini bicicleta.

É o mais novo de todos. O Zé. Tem 4 anos ou perto disso. É um garoto feliz, livre, amado por todos quantos moram ali. É da família.
Os outros catraios são sobrinhos dele. Alguns mais velhos que o tio.
A mãe comprou um vestido novo para levar ao casamento do filho e ao baptizado do neto e do seu Zé, e uma carteirinha de mão, daquelas muito chiques, de cerimónia.
Fui ao cabeleireiro e tudo. A vizinha acha que fiz bem?

5 Comments:

Blogger r.e. said...

talvez parte da magia que os envolve hoje não seja muito mais do que a que parte do teu coração em direcção ao teu passado e o impregna da cor do teu olhar hoje. talvez. porém, não é disso que se trata sempre? Não somos todos pintalgados com a felicidade que os olhares dos outros nos permitem absorver como nossa? Talvez o teu riso para o aniversariante seja a sua pequena prenda de anos inesperada. talvez por isso a melhor do dia. parabéns pela delicadeza impressa na sensibilidade partilhada. beijinho. J.

17:05  
Blogger maltes said...

A entrar pelo neorealismo, este texto de grande sensibilidade, ao qual não conseguimos ficar inertes.
Parabéns.

12:34  
Anonymous Anónimo said...

"Os rapazes choraram a sua morte. Era o pai deles. Compreende-se." - por vezes, penso que algumas das lágrimas que se soltam são da tristeza do que a vida poderia ter sido...e não foi. O texto é lindissimo mas tão triste. Faz lembrar as voltas que a vida dá e que muitas vezes não dá.

01:30  
Anonymous Anónimo said...

"Comoviam-me com a performance que constantemente mantinham, visando disfarçar a vergonha, a humilhação, a fome de afecto que sobejava dentro deles." - Foi então muito melhor assim; O que leva um pai a roubar a felicidade de um filho? Não faço ideia mas era bom esses pais não existirem ou desaparecerem para deixar a vida (que eles fizeram nascer) desabrochar.

23:06  
Blogger Jorge Ferreira said...

Finalmente o Pai percebeu que a culpa não era da mulher nem dos filhos, mas sim por não gostar dele próprio e matou-se felizmente...

17:52  

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