Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

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Localização: Lisboa, Portugal

Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

quinta-feira, março 31, 2005

O Recital.

As faces rosadas dão-lhe um ar sadio. O rapaz é jovem, simpático, alegre, e vem disposto a encantar todos quantos o esperam, com o som que sabe conseguir produzir com os seus dedos assim que, determinadamente, os colocar sobre as teclas negras e brancas do piano.

O piano espera-o já na sala ao lado, no meio do palco do teatro que, sendo novo, vai ter daqui a pouco a honra de o receber. Mas antes, no foyer, é ele quem nos recebe com o seu sorriso num gesto de quem nos devolve a confiança e a certeza que nos falta. Diz-nos que vale a pena termos ido. Que vai estar verdadeiramente connosco e para nós, oferecendo-nos o que de melhor sabe fazer e mais ama na vida: a sua música. Eu não acredito desde logo. Contudo, aguardo ansiosa pela hora de o ouvir. Agora sei que esta dúvida foi insana, mas foi-me inevitável experimentá-la. Tornei-me mais incrédula com o decorrer do fio dos dias da minha vida. Mas, aguardo ansiosa na esperança de me sentir tocada por ele, e pelo som dos seus dedos. Talvez aguarde pelo renovar da crença nos génios da minha vida interior.

A campainha toca e a sala toma a forma do conteúdo do público que a preenche. O rapaz desapareceu, entretanto. Foi mudar de roupa. Foi vestir o personagem que é também, percebi depois, aquele que lhe permite estar mais próximo do seu verdadeiro ser. O Pianista.

De repente, escuro já, o piano surge aos nossos olhos de forma imponente, assustadora. É grande. Impõe respeito. Ele, é apenas um miúdo.
Aplaudimo-lo.
Ele agradece e senta-se no banco que lhe é destinado. Eu desejo que o recital lhe corra bem, pois preciso que lhe corra bem. Preciso egoisticamente que aquele recital me valha a pena.
Fecho os olhos e, sem que me aperceba como, ouço Bach soar aos meus ouvidos. Surpreendo-me, porque na verdade tinha visto há pouco um piano desproporcionadamente grande para o miúdo. Enganei-me. Afinal, ele parecia ter sido feito exactamente na sua justa medida.O repertório seguiu com Schumann, e eu, que até aí estava incrédula não pude distrair-me mais. O miúdo estava a começar a cumprir efectivamente o que tinha prometido antes. É pianista sem dúvida. Ao meu lado alguém chorava de emoção com o Schumann que nos oferecia mediante a intensidade e o peso certo com que tocava nas teclas do instrumento. É inteiro, completo e complexo. Cheio.

No final da primeira parte, a minha ansiedade transformara-se em outra: queria ouvir Prokofiev, Kabalewsky, Bartók. Acreditava já estar na presença de um talento como há muito não tinha o prazer de conhecer. E por isso, queria simultaneamente, e ainda, tirar a prova dos nove com a segunda parte.

A luz apaga-se de novo. O miúdo reentra no estrado. Parece-me mais descontraído agora. Senta-se de novo, e visita-nos com Mozart. Está a trabalhar ainda aquela peça, embora ela já se faça ouvir muito bem. É Mozart sem dúvida. O som nunca engana. Eu anseio pela próxima: um estudo de Prokofiev. O miúdo desaparece de novo, mas agora para dar lugar a um Mestre do piano. Com Prokofiev é Brilhante. Poderoso. Enérgico. Espontâneo. Rigoroso.
Kabalewsky, mal conhecido por mim, foi soberbo. Não pode ser um miúdo, dizia eu a mim mesma, incrédula agora pela presença transcendente da música que ouvia. Não há falhas. Não há recuos. Não há medo. Não há incertezas. Há somente som puro, forte, vigoroso, aterradoramente estimulante e intenso. Vivo.
Eu, volto a acreditar nos génios.
Fico estarrecida. De onde lhe vem o talento, não sei. De onde lhe vem tanta sapiência na interpretação destes compositores, também não sei. Sei que este puto é Brilhante.
Parabéns, Rui.

3 Comments:

Blogger Jorge Ferreira said...

Dá vontade te ter estado lá...

23:42  
Anonymous Anónimo said...

Estou emocionado...

Toda esta utópica descrição recai de uma forma injusta e matreira.
A minha humildade e razão não permitem que eu receba este rasgado elogio de forma silenciosa e egocentrística; pois aquele pianista apresenta-se como sendo o resultado de uma interacção de cariz pedagócico, familiar e amoroso por parte de vários agentes. Agentes esses que são as mãos de Deus que moldaram essa criança num, assim injustamente denominado, «génio».

Por outro lado, esta mesma descrição desperta-me para a "vividez" com que a minha música foi recebida. Pode ter sido só em Azul que ela assim se comportou, mas tal gesto diz-me que não foi um ezperiência em vão.

Gratamente agradeido,
«O Puto»

16:40  
Blogger r.e. said...

Eu estive lá. Ouvi. Emocionei-me também, tanto pelo poder que ao som assite quando forjado em mãos que pareceram ter conhecido a arte de Hefesto na forma como fazem das pulsações rubro pulsar dos sentidos, como também pela proximidade afectiva que me liga a quem tão humildemente nos transportou para a crença de que falas, Azul. Surpreende-nos sempre a naturalidade com que o excepcional surge aos olhos de quem o cria e vive. A tentação de metamorfosear o espanto e o deleite em texto panegírico faz-me admirar a sensibilidade que revelas e partilhas, Azul. *
J.

14:53  

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