Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

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Localização: Lisboa, Portugal

Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

As 5 Damas de Copas.

Brilham-lhe os olhos.
O vermelho escuro do enorme pano que serve de porta ao palco provoca-lhe espasmos de volúpia. O veludo antigo ainda cheira a beijos salivantes, a suor, a lágrimas ... Enfileiradas, as cadeiras, presas umas às outras, abraçam os corpos que, sedentos de prazer, se lhes entregam aninhando-se em pequeníssimos suspiros de alívio.
Está frio lá fora.
Os casacos de fazenda de lã, fortes, pesados, denunciam o calor que se procura. Um chá de cidreira e um cigarro, antecedem a entrada no salão decorado a ouro. Parcialmente desnudo o público aguarda, impaciente, a subida do ícone da casa de espectáculo.
Ela olha em redor.
Deslumbra-se uma vez mais com o lustre cristalino que, lá no cimo, parece cantar para si, cânticos que nunca ouvira antes. A infância empobrecida, longínqua, desaparece para dar lugar ao requinte, à sofisticação de uma dama nobre.
Do outro lado do visível, 5 damas de copas estão quase prontas para entrar em cena e dizer de sua justiça o que, de melhor, conhecem da vida. Representam sobre o que lhes ocorre à alma. Disfarçam-se de outras. Mascaram-se. Pintam-se. Vestem vestidos de cores berrantes e tecidos de tecidos de aspecto duvidoso. Há plumas.

Lia. Vera. Corpo. Corpo. Corpo. Olhar de fera. Pernas torneadas, apetecíveis. Andar sugestivo. Traseiro bem moldado, redondo, deambula desnorteado. Sedução inocente.
Maria. Mae. Velha. Velha. Genica, pujança, sabedoria. Calorosa, preocupa-se com as meninas que, de dia e de noite, lambem os corpos dos outros para o bem de todas. Bate-se pelo futuro risonho que já não vive para si.
Glória. Ursula. Prédio de beleza densa. Rainha. Rainha. Rainha. Faz contas à vida que jaze ao seu lado. Guarda os restos do que já perdeu, para não morrer sozinha.
Lurdes. Edna. Verde. Rugas absolutas. Elegância traduzida em voz. A amante do juiz. Não quer comer. Não tem fome de nada. Só do afecto do qual já se esqueceu. Sem nome.
Maria. Lillian. Bolas. Pintas. Bolas. Dança. Canta. Sorri até encher a sala.

Conversam, riem, programam a agenda de cada dia. Fazem as contas e prestam-nas umas às outras, sem qualquer rivalidade. Trocam de pares para não se cansarem nem promoverem apêgos desnecessários ao negócio. Já se apegaram. Já a cativaram eternamente. Reformulam os preços a praticar pelas tarefas inconfessáveis em que se especializaram desde novas. Precisam de casa e de futuro. São velhas, mas entusiastas ainda. Entusiasmaram-na. Fizeram-na fantasiar que um dia, quando for crescida, quer segui-las naquela indiscrição da maturidade. Os clientes são homens grandes, com dinheiro, com gostos sem desgostos. Com histórias ocultas. Profissionais sérios. Choram nos seus colos, em privado. Trocam experiências à hora do almoço. Rápido. Rápido. Daqui a nada toca a mexer. Rua. Vão de novo prá rua de onde nunca saíram.



Vera está só no banco de jardim. O cobertor cinzento não tapa a mágoa que já nem sente, mas protege-a do frio da solidão. As outras? Observam-na lá ao longe. São estrelas no universo do silêncio. Neva. A sandes de queijo azedo é um manjar delicioso. Amanhã não cantará. É apenas mais uma mulher.

(Revisão da Peça: “A mais velha profissão”. Teatro D. Maria II.)

6 Comments:

Blogger Rui said...

É uma mulher!

19:36  
Anonymous Anónimo said...

Minha linda, qual quê!!! Estou bem, só que por vezes lá calham posts um bocadito mais sérios. Este das passadeiras, irrita-me solenemente...quando as "senhoras" passam pé ante pé, com andar majestoso...e o carro..vai que não vai...(hi, hi, hi) numa subida ingreme, por ex. Mas tenho andado com alguma falta de tempo, é verdade. Tenho-me desdobrado para visitar o pessoal dos blogues à conta de um trabalho enorme que acabei (por acaso) hoje. Até já o encadernei. Prontinho para me deixar mais tempo livre para "outras festas". Agradeço o teu apoio, minha querida Azul. Se algum dia precisar, não me vou esquecer do teu convite e é reciproco da m/ parte, ok? Quanto ao excerto da peça que aqui deixaste: fantástico. Conseguiste resumir num único baralho as 5 damas de copas com uma forma de escrita que é só tua: enlevada, com classe e com uma certa aureola aristocrática. PIU!

22:42  
Blogger isabel said...

Vivó Teatro!!!
Gostei muito de vir a este blog, voltarei.
Bom fim de semana

17:39  
Blogger Alberto Oliveira said...

Minha cara amiga:

Gostei muito desta sua interpretação de uma peça que vou ver no próximo dia doze.

Foi uma coincidência interessantíssima, ter editado este texto no dia em que se decidiu a data de ir ver o espectáculo. Depois deixo um comment sobre o dito cujo.

Tenha um óptimo fim de semana!
beijo.

(Já editei mais um post com o título MEMORANDUM)

18:02  
Blogger mixtu said...

Viva o teatro.
É apenas mais uma mulher... talvez...

09:22  
Blogger Jorge Ferreira said...

Também gostava de ir ao teatro, faz tanto tempo que não vou...

Beijinhos

11:45  

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