O Salão do Grande Hotel. (peça a 4 mãos)
É aquele quadriculado meio apertado que adorna as portas que me sugere o tormento das histórias. Como um cruzado de tecido doirado, entrelaça o meu olhar e enleia-me a atenção para que não escute o que as paredes revelam do que aqui se passou, do outro lado do tempo.
Paira no ar um levíssimo aroma amadeirado. O marmoreado do chão reflecte a luz amarelada dos candeeiros já gastos e poeirentos. Os xizes do tecto são a marca irrefutável que dita o que me falta descobrir ainda deste lugar.
Habitam vozes entre páginas roídas pelo cansaço do papel. Maratonas de olhares sequiosos, mãos ávidas pela frase seguinte, deixaram os cantos esboroados como rugas, como pele gretada nas velhas de sabedoria milenar, como outonos e invernos perpétuos.
As vozes novas, as vozes presentes, as vozes vivas são outras agora. Não andam a cavalo atrás das raposas, não chegaram de caleche forrada a cetim branco e preto, não discutem já o fin-de-siècle em tons empoados e altivos, se bem que foi há tão pouco tempo esta outra fronteira mística do milénio.
Entra e sai gente das mil portas que labirinticamente nos fazem perder o norte à saída e, por entre choros e conversas sussurradas, algumas entre dentes, é ainda possível ouvir pelas frinchas das janelas altas o crepitar das fogueiras ardentes dos amantes que, noite dentro se escaparam aos votos mais credíveis e se amaram em lençóis de seda rubra. Alguns, voltaram anos depois. Sei que são eles pela forma como se olharam hoje de manhã, à alvorada. O tempo parece não ser o único sobrevivente dentro destas paredes. A sumptuosidade do gosto prevaleceu também. E algo aqui se metamorfoseia quanto à civilidade mundana e alienante das urbes modernas. Ouvem-se ainda, como numa ilusão dos sentidos, as pedras de dominó umas nas outras, a embaralhar. Escutam-se, ou adivinham-se os movimentos arrastados das cartas, em jogos que unem os espíritos num entretenimento verdadeiro. Podem não ser os paletós e os vestidos de há cem anos que vestem estas pessoas, mas por momentos todos parecem estar apenas de regresso, não só os amantes, mas também aquele homem, amparado pelo filho e pelos netos, aquela outrora condessa, de título até para a própria esquecido já, aqueles bisnetos do diplomata falecido o ano passado. E a criada de quarto que tantos segredos guardou, e que hoje veio com o vestido de flores amarelas sentar-se à mesa para jantar no salão de festas.
O vinho quente adoça-me a boca e eu entrego-me à escuta da grafonola ali ao canto que, ao tocar, faz as delícias dos convivas em noites de luar. Dança-se aos pares com elegância. Fumam-se charutos e trocam-se comentários, arrogantes por vezes, que os senhores não são de modas quando se trata de cavalos de raça, premiados já em múltiplas ocasiões. Não me faça perder o meu tempo, Conde. O Lamego não está em condições de competir. Talvez me possa oferecer o Antiqua, que esse sim, pareceu-me bastante mais capaz esta manhã. É um cavalo de galope certo e firme, e o senhor sabe muito bem que isso é fundamental... As senhoras mais atrevidas fumam cigarrilhas em boquilhas de prata, e as outras (as que nem dançam nem fumam) trocam cartões entre si enquanto beberricam o chá servido em porcelanas da china. As modistas e a moda são o tema mais apetecido, bem como as fofocas de casamentos desfeitos.
Desenha-se o mistério das almas penadas em lavatórios por onde a água escorre das torneiras de ferro pesado. As heras pintadas em fundo azul, adornam os corredores, e os jarrões de colecção não ficaram esquecidos em cada esquina das horas. O piano vertical ecoa silente. Não há dedos que se atrevam a desafiar a sua afinação incerta. O ébano e o marfim têm a cor que lhes deixaram os inúmeros serões, os fumos dos cachimbos e dos charutos, o próprio pó das horas quietas, nocturnas. Não se escutam acordes hoje. Talvez ao fundo da memória, talvez Debussy, quem sabe até algum Chopin já enferrujado, que a técnica ficou adormecida, um tema ou outro que reúne os convidados à sua volta e os leva a trautear, ou mesmo a dançar maquinalmente. Risos e palmas no fim, mais uma voluta de fumo no ar em torno do pianista, um cálice de xerez vertido com prazer. A noite ficou mais calma entretanto. O teclado borbulhante travou a exaltação despontada pelo prazer do veado degustado ao jantar. Sentados nos sofás de pele pura, os casais embrulham-se em olhares que põem a descoberto fantasias inconfessadas. A lua vai alta iluminando o que está lá fora.
A azáfama na cozinha ouve-se muito ao de leve. Batem cristais uns nos outros e os aventais compridos complicam a rapidez com que tudo deveria estar no seu lugar antes das 23h. Mandam as regras da casa, que tudo esteja no seu lugar antes das 23h. Manias dos patrões diz a criada, voltando ao passado. Ainda agora lá estive uma vez mais e tudo está como dantes à excepção do fogão e das máquinas de lavar loiça. Eram tempos de Glamour os que aqui se viviam. Na sala ao lado estão preparados sumos de fruta e docinhos caseiros embrulhados em papel de cores suaves para que comam antes de dormir, os convidados da casa. Fecham-se portas e abrem-se camas nas quais se depositam raminhos de alfazema para embalar os sonhos.Voltam à sala as senhoras que, cansadas da dança foram retocar-se perante tão exuberantes espelhos que as engrandecem. Algumas estimulam uma vez mais a volúpia de quem as olha como se fosse a primeira vez. Sorriem envergonhadas as mais novas. Os cavalheiros levantam-se para as receber de novo. Ensaiam-se as primeiras saídas, escada acima uns atrás de outras, vão acompanhá-las aos aposentos íntimos. Pelo caminho, combinam-se as escapadelas sorrateiras. Quando ele estiver a dormir, o que não deve tardar, saio para apanhar ar no jardim. Afinal está um calor de atormentar os mais tolerantes, não é verdade?. Estarei lá. Pelas 2h. Os jogos ficam fartos de tanto trocarem de mãos. Nunca se sabe onde irão parar a seguir. As garrafas, vazias que estão já algumas, aguardam pacientemente quem as venha recolher e colocar no vidrão que está na rua, logo à saída da cozinha. Os empregados da sala descansam fumando um SG gigante, encostados à parede, satisfeitos pelo dever cumprido. Amanhã vão ter mais histórias para escrever nos seus diários feitos de memória. Nunca falam entre si sobre o que ouvem ou vêem. Nunca comentam as aventuras dos hóspedes. Ficou-lhes a discrição de outros tempos. Leram a história daquela casa e integraram as regras de bem receber. Apenas sorriem quando a mulher do quarto 315 que chegou ontem de tarde vem à cozinha pedir uma copo de cerveja gelada. Que terror este calor que faz aqui. Preciso de algo bem fresco para beber. Estou no jardim...
Paira no ar um levíssimo aroma amadeirado. O marmoreado do chão reflecte a luz amarelada dos candeeiros já gastos e poeirentos. Os xizes do tecto são a marca irrefutável que dita o que me falta descobrir ainda deste lugar.
Habitam vozes entre páginas roídas pelo cansaço do papel. Maratonas de olhares sequiosos, mãos ávidas pela frase seguinte, deixaram os cantos esboroados como rugas, como pele gretada nas velhas de sabedoria milenar, como outonos e invernos perpétuos.
As vozes novas, as vozes presentes, as vozes vivas são outras agora. Não andam a cavalo atrás das raposas, não chegaram de caleche forrada a cetim branco e preto, não discutem já o fin-de-siècle em tons empoados e altivos, se bem que foi há tão pouco tempo esta outra fronteira mística do milénio.
Entra e sai gente das mil portas que labirinticamente nos fazem perder o norte à saída e, por entre choros e conversas sussurradas, algumas entre dentes, é ainda possível ouvir pelas frinchas das janelas altas o crepitar das fogueiras ardentes dos amantes que, noite dentro se escaparam aos votos mais credíveis e se amaram em lençóis de seda rubra. Alguns, voltaram anos depois. Sei que são eles pela forma como se olharam hoje de manhã, à alvorada. O tempo parece não ser o único sobrevivente dentro destas paredes. A sumptuosidade do gosto prevaleceu também. E algo aqui se metamorfoseia quanto à civilidade mundana e alienante das urbes modernas. Ouvem-se ainda, como numa ilusão dos sentidos, as pedras de dominó umas nas outras, a embaralhar. Escutam-se, ou adivinham-se os movimentos arrastados das cartas, em jogos que unem os espíritos num entretenimento verdadeiro. Podem não ser os paletós e os vestidos de há cem anos que vestem estas pessoas, mas por momentos todos parecem estar apenas de regresso, não só os amantes, mas também aquele homem, amparado pelo filho e pelos netos, aquela outrora condessa, de título até para a própria esquecido já, aqueles bisnetos do diplomata falecido o ano passado. E a criada de quarto que tantos segredos guardou, e que hoje veio com o vestido de flores amarelas sentar-se à mesa para jantar no salão de festas.
O vinho quente adoça-me a boca e eu entrego-me à escuta da grafonola ali ao canto que, ao tocar, faz as delícias dos convivas em noites de luar. Dança-se aos pares com elegância. Fumam-se charutos e trocam-se comentários, arrogantes por vezes, que os senhores não são de modas quando se trata de cavalos de raça, premiados já em múltiplas ocasiões. Não me faça perder o meu tempo, Conde. O Lamego não está em condições de competir. Talvez me possa oferecer o Antiqua, que esse sim, pareceu-me bastante mais capaz esta manhã. É um cavalo de galope certo e firme, e o senhor sabe muito bem que isso é fundamental... As senhoras mais atrevidas fumam cigarrilhas em boquilhas de prata, e as outras (as que nem dançam nem fumam) trocam cartões entre si enquanto beberricam o chá servido em porcelanas da china. As modistas e a moda são o tema mais apetecido, bem como as fofocas de casamentos desfeitos.
Desenha-se o mistério das almas penadas em lavatórios por onde a água escorre das torneiras de ferro pesado. As heras pintadas em fundo azul, adornam os corredores, e os jarrões de colecção não ficaram esquecidos em cada esquina das horas. O piano vertical ecoa silente. Não há dedos que se atrevam a desafiar a sua afinação incerta. O ébano e o marfim têm a cor que lhes deixaram os inúmeros serões, os fumos dos cachimbos e dos charutos, o próprio pó das horas quietas, nocturnas. Não se escutam acordes hoje. Talvez ao fundo da memória, talvez Debussy, quem sabe até algum Chopin já enferrujado, que a técnica ficou adormecida, um tema ou outro que reúne os convidados à sua volta e os leva a trautear, ou mesmo a dançar maquinalmente. Risos e palmas no fim, mais uma voluta de fumo no ar em torno do pianista, um cálice de xerez vertido com prazer. A noite ficou mais calma entretanto. O teclado borbulhante travou a exaltação despontada pelo prazer do veado degustado ao jantar. Sentados nos sofás de pele pura, os casais embrulham-se em olhares que põem a descoberto fantasias inconfessadas. A lua vai alta iluminando o que está lá fora.
A azáfama na cozinha ouve-se muito ao de leve. Batem cristais uns nos outros e os aventais compridos complicam a rapidez com que tudo deveria estar no seu lugar antes das 23h. Mandam as regras da casa, que tudo esteja no seu lugar antes das 23h. Manias dos patrões diz a criada, voltando ao passado. Ainda agora lá estive uma vez mais e tudo está como dantes à excepção do fogão e das máquinas de lavar loiça. Eram tempos de Glamour os que aqui se viviam. Na sala ao lado estão preparados sumos de fruta e docinhos caseiros embrulhados em papel de cores suaves para que comam antes de dormir, os convidados da casa. Fecham-se portas e abrem-se camas nas quais se depositam raminhos de alfazema para embalar os sonhos.Voltam à sala as senhoras que, cansadas da dança foram retocar-se perante tão exuberantes espelhos que as engrandecem. Algumas estimulam uma vez mais a volúpia de quem as olha como se fosse a primeira vez. Sorriem envergonhadas as mais novas. Os cavalheiros levantam-se para as receber de novo. Ensaiam-se as primeiras saídas, escada acima uns atrás de outras, vão acompanhá-las aos aposentos íntimos. Pelo caminho, combinam-se as escapadelas sorrateiras. Quando ele estiver a dormir, o que não deve tardar, saio para apanhar ar no jardim. Afinal está um calor de atormentar os mais tolerantes, não é verdade?. Estarei lá. Pelas 2h. Os jogos ficam fartos de tanto trocarem de mãos. Nunca se sabe onde irão parar a seguir. As garrafas, vazias que estão já algumas, aguardam pacientemente quem as venha recolher e colocar no vidrão que está na rua, logo à saída da cozinha. Os empregados da sala descansam fumando um SG gigante, encostados à parede, satisfeitos pelo dever cumprido. Amanhã vão ter mais histórias para escrever nos seus diários feitos de memória. Nunca falam entre si sobre o que ouvem ou vêem. Nunca comentam as aventuras dos hóspedes. Ficou-lhes a discrição de outros tempos. Leram a história daquela casa e integraram as regras de bem receber. Apenas sorriem quando a mulher do quarto 315 que chegou ontem de tarde vem à cozinha pedir uma copo de cerveja gelada. Que terror este calor que faz aqui. Preciso de algo bem fresco para beber. Estou no jardim...
4 Comments:
Magnifico texto para se ler a varios tempos...
Para mim sai uma cerveja gelada mas preta por favor ;)eu estou aki mesmo em frente ao pc .
Beijos com carinho.
Bom, minha cara amiga Azul. Estou sem fôlego... porque gosto de ler tudo de um... fôlego, da primeira vez.
De repente, como por artes mágicas, até me vi há sessenta anos atrás, no Mónaco ou em La Habana. Quero mais disto; com quantas mãos quiser.
Parabéns!
Abraço.
Entrei num magnífico livro onde passaram por mim retalhos de vidas de tempos idos graças à tua forma de escrita. O requinte das palavras, a discrição dos pormenores, a leveza de um texto que não fica aquém de um género de literatura bastante elevado. Parabens, Azul. Fico à espera das "peças" que se seguem.
consigo reconhecer tanto do que aqui está pintado à vontade de uma sensibilidade burilada. sinto-me lá, nesse lugar, e os dedos tremem como por uma memória fantasma, uma sensação roubada ao tempo. beijinho. J.
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