A Ignorância do Irrelevante.
No último sábado à tarde, após uma jornada de trabalho calorosa, fui até ao café, como habitualmente, tentar descontrair um pouco, antes de me fazer à estrada que me traria de volta ao aconchego do lar. Como de costume, sentadas já nas mesas de sempre, as senhoras beberricavam o café que as ajuda a manter a conversa no ponto certo.
- Olá a todas, como estão hoje?, disse-lhes do alto da minha cara alegre e bem disposta, que elas tão bem conhecem.
- Então a senhora ainda por cá anda? Pensávamos que só a víamos pr’a semana.
- Pois, isso queria eu, mas só me despachei agora, vejam lá. Ainda nem almocei.
Os caracóis da D. Luísa apresentavam-se luminosos, dando-lhe um ar de Marquês de Pombal, mas no feminino.
- A senhora D. Luísa a partir de hoje vai ficar com a alcunha da Marquesa, pode ser? Gracejei com ela.
- Ah! Estão muito alvoraçados não estão? O Zé hoje esticou-se um bocadinho, mas amanhã vamos a Fátima, de maneira que eu tive de ir arranjar o cabelo.
- Fez muito bem. Está muito bonita. Eu estava a brincar consigo. Rimos.
Dirigi-me ao balcão para pedir qualquer coisa para comer, e numa mesa mais à frente estava a Celeste. Pareceu-me triste. Sentei-me ao pé dela, aproveitando que a outra mesa estava completa, e ela olhou-me de soslaio, fazendo um breve comentário ao meu penteado que, por estar diferente do habitual, a fez estranhar-me quando entrei.
- Veja lá que quando entrou nem a reconheci. Traz o cabelo apanhado, nem parecia a senhora.
De facto, normalmente trago-o solto, deambulando ao vento, mas o não reconhecimento da Celeste, tinha outra razão. Naquele dia, tinha ido viajar para longe dali. Logo pela manhã, entrou no carro do genro, a quem pedira para a levar a visitar o filho mais velho, encarcerado há 4 anos. Os lábios rodeados de uma tinta avermelhada, não mascaravam a beleza perdida, mas, ao invés disso, davam um outro sabor à sua boca. Tinha bebido. Era por demais evidente. Não lhe conhecia este refúgio. Fiquei preocupada.
A Celeste é uma mulher de 70 e muitos anos, com um ar de desembaraço que a mantém vistosa como as mais belas flores dos jardins suspensos do nosso imaginário. Mulher da doca, de traços esguios, traz a mala à tiracolo e o cabelo pintado de amarelo torrado, na maior parte dos dias, a cheirar a delícias do mar e alcatrão. Traz no coração um rol de histórias cabeludas para contar, porém, revela-se na maior parte do tempo da tertúlia, reservada. Talvez por serem cabeludas as suas aventuras, ou por achar que ninguém tem pachorra ou está interessado no que tem a dizer. Envergonha-se demasiado pelo passado dos outros, pelo presente dos seus, pelo futuro que não encontra.
- Então amanhã a Celeste também vai ao passeio?
-Vou sim senhora. Mas a gente não vamos lá fazer nada. Aquilo há-de ser uma enchente. Havíamos era de ir ás Caldas, ao mercado, e almoçar à Nazaré .Eu quero lá saber de Fátima. Não acredito em nada. Já não acredito em nada.
Celeste chora. Chora Celeste, que eu estou aqui, só para ti, agora. Falou-me aos poucos, por entre soluços e lágrimas enchutadas pelo lenço amarfanhado que trazia no bolso, do filho que já não via há meses. Levou-lhe bolachas, papel de mortalha e tabaco de enrolar. Já sabe como é, leva tudo em caixas que se abrem depressa à entrada, para a revista da praxe. Com isso já nem se importa. Já se acostumou. O pior é o resto. O rapaz não ganha juízo. É reincidente. Da outra vez apanhou 5 anos. Desta, 9.
- Agora fala-se que talvez saia em condicional. Já nem sei o que é melhor. Se ele vem cá pra fora, sem trabalho, sem nada... Quem é que lhe dá trabalho, diga-me lá?! Eu não posso ajudá-lo. Valha-me Deus! Ele não aprende, nem por mais uma. Aquilo ali, é porta com porta. A senhora sabe lá o reboliço que aquilo é, a partir do meio da tarde ... Só visto. Chora. Eu já não acredito nos santos senhora doutora. Eu já não acredito em nada. Tou farta de pedir a deus que traga luz àquela cabeça, e à cabeça do meu neto, mas nada. Nada!
Compreendo Celeste. Compreendo. Estou a ouvir-te Celeste. Acredita que te estou a ouvir. Não deixes de acreditar, disse-lhe vezes sem conta. Mas, temo que seja tarde demais. Sei que sabes que este não é o lugar onde tu tenhas lugar. Nem tu, nem os teus a quem tanto amas, e com quem tanto te preocupas, e zangas, e frustras, e te sentes desiludida. Não baixes os braços Celeste. Fá-lo por ti, pelo menos. Sei que lhe digo tudo isto em vão e, contudo, não me coíbo de lho dizer. Talvez ela perceba um dia, que lhe quero bem, e que gostaria de a ajudar ainda que não saiba como. Sinto-me impotente, face a tamanha realidade. Mas, acredito que é possível que se reinvente a cada instante, a cada dia, a cada almoço em que come apenas os restos do que o neto que está a seu cargo deixa para ela.
- Ainda hoje, quando cheguei, perto do meio dia, ele já estava acordado e disse-me: Oh vó, eu vou tomar banho, e depois vou-me embora. E eu, disse: atão não queres almoçar cá com a avó e depois vais? Tá bem, disse ele. E foi tomar banho enquanto eu lhe fiz um tacho de esparguete e fritei uma embalagem de rissóis que lá tinha. Eram 8. Ele disse: oh vó, senta-te aqui pra comeres também. Oh filho, come tu que a avó tem ali almoço. Ele comeu-os todos. Tá um matulão que a senhora devia ver. Come tão bem. Chora.
- E você Celeste, o que é que almoçou?
- Eu? ... Aaa ... Eu comi uma costeleta de porco que lá tinha com amêijoas.
- Ah sim? Ainda bem.
Não acreditei no que me disse. Porquê? Não sei. A única coisa que sei é que me cheirava a vinho tinto. Nada mais.
(É claro que a história da Celeste não acaba aqui, mas por agora, prefiro deixar a pairar no ar o leve aroma da esperança que lhe falta. A Celeste precisa de ajuda. Divina, ou humana, tanto faz. Pergunto apenas isto? Onde estão os recursos necessários para acudir a situações como esta? Onde param as instituições de assistência social, que têm por dever tomar conhecimento destas famílias, ajudar quem precisa de facto? Onde estão os serviços de reinserção social de que tanto se fala? Enfim, boas reflexões caros amigos. Até breve.)
- Olá a todas, como estão hoje?, disse-lhes do alto da minha cara alegre e bem disposta, que elas tão bem conhecem.
- Então a senhora ainda por cá anda? Pensávamos que só a víamos pr’a semana.
- Pois, isso queria eu, mas só me despachei agora, vejam lá. Ainda nem almocei.
Os caracóis da D. Luísa apresentavam-se luminosos, dando-lhe um ar de Marquês de Pombal, mas no feminino.
- A senhora D. Luísa a partir de hoje vai ficar com a alcunha da Marquesa, pode ser? Gracejei com ela.
- Ah! Estão muito alvoraçados não estão? O Zé hoje esticou-se um bocadinho, mas amanhã vamos a Fátima, de maneira que eu tive de ir arranjar o cabelo.
- Fez muito bem. Está muito bonita. Eu estava a brincar consigo. Rimos.
Dirigi-me ao balcão para pedir qualquer coisa para comer, e numa mesa mais à frente estava a Celeste. Pareceu-me triste. Sentei-me ao pé dela, aproveitando que a outra mesa estava completa, e ela olhou-me de soslaio, fazendo um breve comentário ao meu penteado que, por estar diferente do habitual, a fez estranhar-me quando entrei.
- Veja lá que quando entrou nem a reconheci. Traz o cabelo apanhado, nem parecia a senhora.
De facto, normalmente trago-o solto, deambulando ao vento, mas o não reconhecimento da Celeste, tinha outra razão. Naquele dia, tinha ido viajar para longe dali. Logo pela manhã, entrou no carro do genro, a quem pedira para a levar a visitar o filho mais velho, encarcerado há 4 anos. Os lábios rodeados de uma tinta avermelhada, não mascaravam a beleza perdida, mas, ao invés disso, davam um outro sabor à sua boca. Tinha bebido. Era por demais evidente. Não lhe conhecia este refúgio. Fiquei preocupada.
A Celeste é uma mulher de 70 e muitos anos, com um ar de desembaraço que a mantém vistosa como as mais belas flores dos jardins suspensos do nosso imaginário. Mulher da doca, de traços esguios, traz a mala à tiracolo e o cabelo pintado de amarelo torrado, na maior parte dos dias, a cheirar a delícias do mar e alcatrão. Traz no coração um rol de histórias cabeludas para contar, porém, revela-se na maior parte do tempo da tertúlia, reservada. Talvez por serem cabeludas as suas aventuras, ou por achar que ninguém tem pachorra ou está interessado no que tem a dizer. Envergonha-se demasiado pelo passado dos outros, pelo presente dos seus, pelo futuro que não encontra.
- Então amanhã a Celeste também vai ao passeio?
-Vou sim senhora. Mas a gente não vamos lá fazer nada. Aquilo há-de ser uma enchente. Havíamos era de ir ás Caldas, ao mercado, e almoçar à Nazaré .Eu quero lá saber de Fátima. Não acredito em nada. Já não acredito em nada.
Celeste chora. Chora Celeste, que eu estou aqui, só para ti, agora. Falou-me aos poucos, por entre soluços e lágrimas enchutadas pelo lenço amarfanhado que trazia no bolso, do filho que já não via há meses. Levou-lhe bolachas, papel de mortalha e tabaco de enrolar. Já sabe como é, leva tudo em caixas que se abrem depressa à entrada, para a revista da praxe. Com isso já nem se importa. Já se acostumou. O pior é o resto. O rapaz não ganha juízo. É reincidente. Da outra vez apanhou 5 anos. Desta, 9.
- Agora fala-se que talvez saia em condicional. Já nem sei o que é melhor. Se ele vem cá pra fora, sem trabalho, sem nada... Quem é que lhe dá trabalho, diga-me lá?! Eu não posso ajudá-lo. Valha-me Deus! Ele não aprende, nem por mais uma. Aquilo ali, é porta com porta. A senhora sabe lá o reboliço que aquilo é, a partir do meio da tarde ... Só visto. Chora. Eu já não acredito nos santos senhora doutora. Eu já não acredito em nada. Tou farta de pedir a deus que traga luz àquela cabeça, e à cabeça do meu neto, mas nada. Nada!
Compreendo Celeste. Compreendo. Estou a ouvir-te Celeste. Acredita que te estou a ouvir. Não deixes de acreditar, disse-lhe vezes sem conta. Mas, temo que seja tarde demais. Sei que sabes que este não é o lugar onde tu tenhas lugar. Nem tu, nem os teus a quem tanto amas, e com quem tanto te preocupas, e zangas, e frustras, e te sentes desiludida. Não baixes os braços Celeste. Fá-lo por ti, pelo menos. Sei que lhe digo tudo isto em vão e, contudo, não me coíbo de lho dizer. Talvez ela perceba um dia, que lhe quero bem, e que gostaria de a ajudar ainda que não saiba como. Sinto-me impotente, face a tamanha realidade. Mas, acredito que é possível que se reinvente a cada instante, a cada dia, a cada almoço em que come apenas os restos do que o neto que está a seu cargo deixa para ela.
- Ainda hoje, quando cheguei, perto do meio dia, ele já estava acordado e disse-me: Oh vó, eu vou tomar banho, e depois vou-me embora. E eu, disse: atão não queres almoçar cá com a avó e depois vais? Tá bem, disse ele. E foi tomar banho enquanto eu lhe fiz um tacho de esparguete e fritei uma embalagem de rissóis que lá tinha. Eram 8. Ele disse: oh vó, senta-te aqui pra comeres também. Oh filho, come tu que a avó tem ali almoço. Ele comeu-os todos. Tá um matulão que a senhora devia ver. Come tão bem. Chora.
- E você Celeste, o que é que almoçou?
- Eu? ... Aaa ... Eu comi uma costeleta de porco que lá tinha com amêijoas.
- Ah sim? Ainda bem.
Não acreditei no que me disse. Porquê? Não sei. A única coisa que sei é que me cheirava a vinho tinto. Nada mais.
(É claro que a história da Celeste não acaba aqui, mas por agora, prefiro deixar a pairar no ar o leve aroma da esperança que lhe falta. A Celeste precisa de ajuda. Divina, ou humana, tanto faz. Pergunto apenas isto? Onde estão os recursos necessários para acudir a situações como esta? Onde param as instituições de assistência social, que têm por dever tomar conhecimento destas famílias, ajudar quem precisa de facto? Onde estão os serviços de reinserção social de que tanto se fala? Enfim, boas reflexões caros amigos. Até breve.)