" (...)Sabes que hoje recebi uma notícia triste. Morreu-me o homem do fígado podre.
O fígado não se compadece com conversas, trata-as como se fossem contas de um rosário partido, despedaça-as em menos de nada, e mata, pura e simplesmente. Lembrei-me de ti, de imediato, assim que recebi a notícia. Ficou completa a parte que faltava para aprender aquilo que me quiseste ensinar logo no primeiro dia em que nos vimos. De facto, há coisas que me ultrapassam, que eu não posso controlar, alterar, resolver. Disse-te que concordava contigo, ainda que da minha experiência, tivesse uma maioria de histórias de sucesso para contar. Disse-te ainda que acreditava sempre, e que esse era talvez o meu maior segredo. Também acreditei nele e embora a partir de hoje, não possa provar nunca mais que ele era viável, eu sei que era. Morreu de cirrose, não por falta do meu amor ou da minha disponibilidade humana para o ter comigo o tempo que fosse preciso para se recuperar a si mesmo e à sua verdade interior.
Lembrei-me também da última conversa que tivemos, eu e ele. Falámos precisamente de mentira e de verdade, e eu disse-lhe que confiava nele, mas não lhe podia subscrever a mentira que a si, de si, continuava a querer alimentar. Ele queria realmente morrer. Falava a sério quando pensou em atirar-se para debaixo do comboio da Póvoa. Ele achava que não, não queria crer. Era-lhe doloroso perceber isso. Preferia achar, e que eu lhe dissesse, que tinha sido apenas um pensamento menos bom que lhe ocorreu em tempos, por andar com a alma bêbada das limitações de que, entretanto, padecia. Mentira. Duarte, é mentira. Não se engane Duarte, porque é pior para si. Acha? Tenho a certeza, Duarte. Foi a operação à coluna que me deu cabo da cabeça. Deixei de poder tocar, e depois, foi a morte da minha mãe. Eu sempre bebi muito, era costume, mas a partir daí comecei a beber de forma diferente. Bebia mais, tinha que beber senão não conseguia dormir. Bebia para se anestesiar de si, para se ausentar, para se esquecer. Sim, bebia para não ver o que me era penoso. Para não saber da minha infelicidade. Pois. Para não saber da sua infelicidade. Mas, também para não se viver mais Duarte. Você não se sente capaz de se viver mais, daqui em diante. Não tolera a frustração da vida, dos embates que ela lhe trouxe ultimamente. Eu sei que já não venho a tempo. Tempo Duarte, tempo. Pois é, é sempre o tempo o que nos falta. É sempre o tempo que nos prega estas partidas. Mas, olhe que entretanto é melhor ir ver do fígado. Pois, pois, quero ir ao médico. Agora já estou decidido a ir. A minha irmã até me disse que qualquer dia tinha mas era que ir tratar dos dentes, que realmente precisam, mas eu disse-lhe, não primeiro tenho que tratar da cabeça, depois lá irei aos dentes. Sim, Duarte, tem que tratar da sua cabeça para que ela lhe albergue a dor do que já sabe - a dor da verdade que é a sua e da qual tem andado a fugir descaradamente..."