Não estamos certos do que seria uma sociedade ideal, nem sequer se, a existir ou a ser possível, seria desejável. Da mesma maneira, e ao nível individual, jamais encontrámos o ser ideal, perfeito. Mas, e de acordo com o que somos e conhecemos da nossa espécie por via do contacto que todos temos uns com os outros, acreditamos que se existe esse ser ideal, não será humano. Resta-nos aceitar a realidade do que somos, na distribuição de espécie que nos divide entre machos e fêmeas, não descurando, porém, aquilo que já vamos sabendo que não nos distingue.
Por exemplo, tudo o que se encontra na dimensão relacional afectiva da nossa vida. Haja a possibilidade de assumir as dimensões que transcendem aquilo que a sociedade faz com elas, porque estão para além e antes dela. Haja a coragem de continuar a reflectir sobre tais dimensões, sem medo de corrermos o risco de nos tornarmos indesejáveis socialmente, mal entendidos, desvirtuados na nossa identidade como seres humanos, ou como homens ou mulheres que somos. Continuemos a fazer esforços para que nos “inscrevamos” como diria José Gil.
No tempo presente, a sociedade ocidental (da qual a sociedade portuguesa faz parte) pretende de algum modo ser modelo de virtude, de sucesso, de pacificidade, de equilíbrio. Nem sempre o consegue. Porventura não tem possibilidades de ascender a tais padrões a que aspira. Talvez se nos colocássemos num avião que sobrevoasse esta sociedade a uma distância suficiente, conseguíssemos ter uma visão que a aproximasse desse padrão. Contudo, como toda a distância que se quer óptima para percepcionar seja o que for, cairíamos no conforto da superficialidade da visão. Tentadora, tranquilizadora é certo. Porém, não perfeita, e menos ainda rigorosa. E menos ainda, verdadeira.
Numa lógica bipolar, bidimensional, temos ao longo do tempo viciado cada vez mais a forma como pensamos e, por conseguinte, agimos e somos. Naquilo que nos é mais essencial, porque determinante da forma como nos formamos, e assim podemos contribuir para o desenvolvimento do mundo social em que nos integramos - a gestão da nossa vida afectiva -, temos sido desonestos na maneira de crescer e ensinar a crescer, para poder ser.
Podemos imaginar com facilidade alguém dizer de uma menina que mais afirmativamente demonstre, expresse o seu desagrado face a algo, que é uma “refilona”, que tem um “péssimo feitio”; ou de um menino que seja mais discreto na expressão do mesmo desagrado, que é “mariquinhas” ou então que é um “cobardolas”. Também podemos imaginar facilmente o que faríamos ou diríamos a uma menina que nos chega a casa e conta que o colega da escola lhe roubou ou partiu o lápis – “Deixa lá, não te importes. A mamã depois compra outro”. Se se tratasse de um rapaz, se calhar a resposta podia muito bem ser esta “Então e tu ficaste-te? Não lho foste tirar?”.
Num contexto mais adulto, uma mulher que se apresente mais assertiva e determinada face aos seus objectivos profissionais, é por vezes dita como “varonil”; um homem nas mesmas condições, mas menos disponível para regatear aquilo a que tem direito ou pretende, é visto como “um fraco”. É certo que somos diferentes, que nem todos se regem pelos menos interesses, nem pelos mesmos modelos, porém, nestes vulgaríssimos casos que fantasiei, há algo que lhes é comum: alguma coisa se vive como agressiva, perturbadora do bem estar, ou estamos na presença de algo que queremos para nós, e por isso em qualquer das situações é solicitada a energia agressiva (ora como resposta; ora como energia mobilizadora). Todavia, podemos a partir destes simples exemplos compreender que não ensinamos (nem interiorizamos porque somos ensinados) de maneira similar ambos os sexos a gerir a agressividade, qualquer que seja o registo em que se possa tornar útil.
Da mesma maneira, também a partir deles, podemos reportar-nos às diferentes formas como socialmente são aceites (ou não) as várias formas de expressão dessa gestão.
Se atendermos às partes mentais responsáveis pela gestão do polo agressivo da vida - as partes sádicas e masochistas da mente -, podemos dizer que esta mesma gestão depende de balanceamentos correctos, para que eficazes, destas dimensões. Na sociedade em que vivemos, as raparigas e os rapazes são ensinados a fazer uso destas dimensões, de molde a que estes balanceamentos sejam tendencialmente estanques. Isto é, grosso modo, ensinamos as raparigas a fazerem uma gestão da agressividade com predomínio das partes masochistas sobre as sádicas; e os rapazes, a fazerem essa gestão com predomínio das partes sádicas sobre as masochistas. Numa aproximação grosseira à realidade dos fenómenos de que falamos, diremos que às raparigas é ensinado basicamente a “comer e calar”; aos rapazes, é dito que falem, que se revelem, e se necessário for que ajam.
Podemos fazer um esforço para considerar que todos estes elementos que são passados de geração em geração, têm um papel benéfico para a integração de todos os rapazes e raparigas no mundo social, e que a manutenção destas diferenças são igualmente benéficas para o garantido desenvolvimento da mesma sociedade. Podemos igualmente fazer um esforço para considerar, que salvo raríssimas excepções, estas diferenças no ensino e aprendizagem da gestão da agressividade não é essencialmente prejudicial ao bom desenvolvimento interior de cada indivíduo. Contudo, diríamos contrariamente ao ditado popular, que as excepções nem sempre confirmam obrigatoriamente e de forma linear a regra. Por outro lado, não nos parece sério que, mesmo que o ditado estivesse correcto, fosse motivo suficiente para desviarmos o olhar das excepções. Convivamos com o real. Não nos afastemos dele, ouvimos dizer a José Gil. Com Coimbra de Matos nos ouvidos e no coração, não estamos certos de que a boa fé e a boa vontade humana cheguem para acedermos a uma verdade mais ampla acerca destas questões. Expandamos o pensamento, para que nos transformemos continuamente e assim possamos desenvolver-nos, dir-nos-ía Wilfred Bion.
Muito recentemente, no ano de 2003, saíram para consulta e conhecimento de alguns (os poucos que se interessam por estas questões) os resultados de uma pesquisa levada a cabo pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, através do Socinova (Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada) sobre a Violência Contra as Mulheres em Portugal. Naquilo em que a modesta brochura que serve de suporte ao texto, nos dá conta das primeiras conclusões do estudo, cujos dados recolhidos continuam em análises mais aprofundadas, podemos desde logo ter uma visão privilegiada sobre os dados numéricos que atestam uma parte substancial da verdade que pretendem conhecer e revelar. São números cuidados, rigorosamente tratados e, portanto, credíveis. São assustadoramente verdadeiros. À medida que os vamos lendo, revelam-se tanto mais assustadores, quanto parciais. Apenas dão conta dos casos de violência participados aos Institutos de Medicina Legal do Porto e de Coimbra, durante o ano de 2000. São portanto parciais no que respeita à dimensão do tempo que cobrem, bem como quanto à cobertura que fazem do mapa geográfico português. Porém, podem muito bem ser paradigmáticos do que se passa neste país à beira-mar plantado, desde sempre, e em todos os lugares onde há gente. Além disto, e inequivocamente, obrigam-nos a permanecer situados num tempo presente.
Qualquer dos gráficos que apresenta a dita brochura, dá-nos conta da distribuição em percentagens de vários parâmetros analisados, abstraídos de milhares de casos.
São de facto aos milhares.
Milhares de mulheres batidas em Portugal no ano de 2000, em Coimbra e Porto.
Como é natural, sempre que se fala em violência contra as mulheres, fala-se de qualquer coisa que foi vulgarizada no discurso como “violência doméstica”, e por conseguinte, atendendo à maioria dos casos conhecidos, de violência física. O estudo a que nos referimos, teve o cuidado de abstrair um pouco mais quanto ao que pode ser a violência, revelando também (porque fez dela uma categoria a analisar e a atender) outras formas possíveis de vivência violenta como acontece com a vivida psicologicamente. Desde já, e não só por isto, merecem o nosso apreço. Foram corajosos. Aplaudimos de pé. Mas, neste nosso exercício reflexivo, não podemos ficar apenas pela verdade dos dados revelados, porque eles não revelam tudo, e sobretudo porque são anónimos. Com toda a validade e credibilidade que dedicamos aos autores e aos resultados por eles apresentados, não podemos deixar de a propósito dos mesmos, reflectir um pouco mais acerca da tentação à qual ainda não fomos capazes de resistir de ficarmos presos ao anonimato dos números. Quem são estas mulheres, designadas por vítimas? Quem são estes homens (na sua maioria, companheiros da vida adulta, objectos de amor destas mulheres) que recebem o título de agressores? O que os move nestas teias dignas de guiões apetecíveis para o cinema? Como se chamam? Quais são as suas estórias de vida individual? Como compreendem eles e elas o amor que vivem e que dedicam uns aos outros? Como vivenciam na alma, no coração, eles e elas, cada batida, cada empurrão, cada grito mais ou menos sussurrrado? Quem os ensinou a desamar assim?
(Ete texto é mais um excerto do ensaio sobre a violência no feminino, do qual faz parte o post anterior intitulado "O poder do silêncio". Agradeço a vossa leitura desde já, e desculpo-me pela extensão do post. Obrigada.)