Cem Truques, Nu Azul
Um Lugar com Vista para Além de Mim ...
Acerca de mim
- Nome: Azul
- Localização: Lisboa, Portugal
Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...
quinta-feira, junho 30, 2005
Extravagâncias de Idalina.
Um leque vermelho aberto inesperadamente dentro do carro numa fila de trânsito em dia de calor,
um isqueiro bic da cor de cada conjunto de roupa interior que veste diariamente por debaixo das saias,
um sorriso ao desconhecido com que se cruza na rua e que simpatiza com ela,
um lençol de linho beje que lhe acaricia a pele nua,
uns sapatos de salto agulha para se pavonear ao espelho da porta da entrada,
um cinzeiro de prata chic que leva na carteira, mas nunca usou,
uma caneta de tinta permanente Mont Blanc amarela...
Esta mulher é uma extravagante!
um isqueiro bic da cor de cada conjunto de roupa interior que veste diariamente por debaixo das saias,
um sorriso ao desconhecido com que se cruza na rua e que simpatiza com ela,
um lençol de linho beje que lhe acaricia a pele nua,
uns sapatos de salto agulha para se pavonear ao espelho da porta da entrada,
um cinzeiro de prata chic que leva na carteira, mas nunca usou,
uma caneta de tinta permanente Mont Blanc amarela...
Esta mulher é uma extravagante!
segunda-feira, junho 27, 2005
Idalina.
Sente-se, de repente, sem qualquer espessura interior. Como se, instantaneamente, o seu mundo interno tivesse encolhido com a chuva seca que teima em cair lá dentro.
Pergunta-se que raio foi o que levou para tão longe o Sol que raiava até há pouco tempo, e que fazia com que a humidade do suor da sua pele lhe lavasse a alma e a expandisse, qual vagina excitada.
Outrora, no leito corriam águas calmas, límpidas e transparentes, abundantes. Agora, lama seca sem vitalidade, agarra-se ao fundo tornando-o numa espécie de vitral sem cores, sem brilho, sem luz.
Que raio a atravessou?
Que angústia não nomeada é esta que a atrapalha?
O bife com molho especial espera-a no prato colocado diante dos copos vermelhos, logo à noite. A companhia que aguarda é espantosamente serenizante para si. Contudo, não recebe notícias dele. Talvez seja isso. Não teve ainda, notícias dele.
O homem do café piscou-lhe o olho. Talvez saiba do seu paradeiro. Nada lhe disse em concreto. O telefone não regista qualquer chamada. É a esperança que se esvai. "Já não estou interessada em saber", apetece-lhe dizer a si mesma. Era tudo mais fácil. Mas, sabe que não se aldraba com tanta facilidade assim.
Está, na verdade, frustrada.
Não gosta de dizer afirmativamente: NÃO. Ontem disse-o. Talvez seja isso. Sente-se culpada.
O jantar do bife do prato em frente aos copos vermelhos não está decidido, confirmado. Ela disse que ia. Ele, nada disse.
Está com medo. Mas, medo de quê?
Da trovoada que se avizinha, porventura. O boletim metereológico anunciou calor, mas enganou-se. Vai chover neste fim de semana.
A inquietude, o risco, a angústia exercem nela um poder quase fatal.
Pensa Idalina. Pensa. Salva-te Idalina, salva-te!
- Dá-me um cigarro dos seus?
- Com certeza. Com todo o gosto. Tem lume? Quer?
- Não. Não tenho. Já agora, gradeço.
(Um silêncio breve. O cigarro acende-se pela sua mão)
- Sabe é que, na verdade, eu supostamente nem sequer sou fumador.
(Fica sem palavras. Não responde)
O homem do café piscou-lhe o olho.
- Então já vai de fim de semana?
Sorri.
- Isso queria você saber não era? mas, eu não lhe digo.
- Olhe que fica a perder. Tenho muito para lhe dizer.
Riem.
O que será que quis dizer?
Na altura achou que era mais um truque manhoso dos dele.
Ultimamente não anda a perceber muita coisa. Oh Diabo!Será que anda assim tão distraída?
O pulga rói-lhe a orelha.
Pensa Idalina, pensa.
Como quem faz contas de cabeça, vamos lá a ver se a gente se entende.
Se alguém te pede um cigarro sem ser fumador, das duas três: ou é maluco, ou está a meter conversa contigo. Acha-te graça. Eu também lhe acho graça, confesso. Tem muita pose, o tipo. Serão os olhos meio papudos que lhe dão piada? As entradas que lhe alongam a testa? É alto. Tem um rosto familiar. Não sei quem é.
Conheces o tipo do café e sabes que ele te topa há séculos. Sabes que ele sabe porque tu lhe disseste que achas graça ao tipo que tu esperas que te peça um cigarro seja fumador ou não. Ficas a saber que o tipo não fumador te anda a tirar as medidas.
Nao te distraias, Idalina. Não te distraias.
Não inventes, Idalina.
Cria.
Pergunta-se que raio foi o que levou para tão longe o Sol que raiava até há pouco tempo, e que fazia com que a humidade do suor da sua pele lhe lavasse a alma e a expandisse, qual vagina excitada.
Outrora, no leito corriam águas calmas, límpidas e transparentes, abundantes. Agora, lama seca sem vitalidade, agarra-se ao fundo tornando-o numa espécie de vitral sem cores, sem brilho, sem luz.
Que raio a atravessou?
Que angústia não nomeada é esta que a atrapalha?
O bife com molho especial espera-a no prato colocado diante dos copos vermelhos, logo à noite. A companhia que aguarda é espantosamente serenizante para si. Contudo, não recebe notícias dele. Talvez seja isso. Não teve ainda, notícias dele.
O homem do café piscou-lhe o olho. Talvez saiba do seu paradeiro. Nada lhe disse em concreto. O telefone não regista qualquer chamada. É a esperança que se esvai. "Já não estou interessada em saber", apetece-lhe dizer a si mesma. Era tudo mais fácil. Mas, sabe que não se aldraba com tanta facilidade assim.
Está, na verdade, frustrada.
Não gosta de dizer afirmativamente: NÃO. Ontem disse-o. Talvez seja isso. Sente-se culpada.
O jantar do bife do prato em frente aos copos vermelhos não está decidido, confirmado. Ela disse que ia. Ele, nada disse.
Está com medo. Mas, medo de quê?
Da trovoada que se avizinha, porventura. O boletim metereológico anunciou calor, mas enganou-se. Vai chover neste fim de semana.
A inquietude, o risco, a angústia exercem nela um poder quase fatal.
Pensa Idalina. Pensa. Salva-te Idalina, salva-te!
- Dá-me um cigarro dos seus?
- Com certeza. Com todo o gosto. Tem lume? Quer?
- Não. Não tenho. Já agora, gradeço.
(Um silêncio breve. O cigarro acende-se pela sua mão)
- Sabe é que, na verdade, eu supostamente nem sequer sou fumador.
(Fica sem palavras. Não responde)
O homem do café piscou-lhe o olho.
- Então já vai de fim de semana?
Sorri.
- Isso queria você saber não era? mas, eu não lhe digo.
- Olhe que fica a perder. Tenho muito para lhe dizer.
Riem.
O que será que quis dizer?
Na altura achou que era mais um truque manhoso dos dele.
Ultimamente não anda a perceber muita coisa. Oh Diabo!Será que anda assim tão distraída?
O pulga rói-lhe a orelha.
Pensa Idalina, pensa.
Como quem faz contas de cabeça, vamos lá a ver se a gente se entende.
Se alguém te pede um cigarro sem ser fumador, das duas três: ou é maluco, ou está a meter conversa contigo. Acha-te graça. Eu também lhe acho graça, confesso. Tem muita pose, o tipo. Serão os olhos meio papudos que lhe dão piada? As entradas que lhe alongam a testa? É alto. Tem um rosto familiar. Não sei quem é.
Conheces o tipo do café e sabes que ele te topa há séculos. Sabes que ele sabe porque tu lhe disseste que achas graça ao tipo que tu esperas que te peça um cigarro seja fumador ou não. Ficas a saber que o tipo não fumador te anda a tirar as medidas.
Nao te distraias, Idalina. Não te distraias.
Não inventes, Idalina.
Cria.
domingo, junho 26, 2005
Hoje.
Estou sedenta de qualquer coisa.
Água, talvez.
Sexo.
Pintei o cabelo de negro em busca do brilho que me envaidece.
Está sedoso.
Solto.
Brilham-me os olhos quando me vejo, nua, ao espelho.
Quero que me toques. Que me beijes a boca salivante.
Que me bebas. Que me arrebates.
Não tenho pudores que me vejas assim. Toca-me anda!
Vem comigo até à cama e torna-me senhora de ti!
Água, talvez.
Sexo.
Pintei o cabelo de negro em busca do brilho que me envaidece.
Está sedoso.
Solto.
Brilham-me os olhos quando me vejo, nua, ao espelho.
Quero que me toques. Que me beijes a boca salivante.
Que me bebas. Que me arrebates.
Não tenho pudores que me vejas assim. Toca-me anda!
Vem comigo até à cama e torna-me senhora de ti!
Inscrição na areia.
"O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem peso nem
de uma rota de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma."
(Poema de Cecília Meireles, in O instante existe)
importância nenhuma.
Não tem peso nem
de uma rota de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma."
(Poema de Cecília Meireles, in O instante existe)
segunda-feira, junho 20, 2005
O Sorriso
"Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."
(Eugénio de Andrade)
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."
(Eugénio de Andrade)
As Palavras
"São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas ocnchas puras?"
(Eugénio de Andrade)
as palavras.
Algumas, um punhal,
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas ocnchas puras?"
(Eugénio de Andrade)
sábado, junho 11, 2005
sexta-feira, junho 10, 2005
Hipocrisia.
Um afecto? Um desporto? Um lamento? Uma recordação?
Uma palavra? Um sufoco? Um gesto sem sentido?
Um tormento?
Um lapso? Um terreno baldio? Um mural de azulejos?
?
?
Um discurso falhado.
Um tanque sem fundo.
Um postal rasgado.
Uma incógnita.
Uma presença demasiada.
Um labirinto sem entrada nem saída.
Um fio sem contas.
Um rosário dito ao fim da tarde por um plebeu sem nome.
Uma promessa de cera.
Uma palavra? Um sufoco? Um gesto sem sentido?
Um tormento?
Um lapso? Um terreno baldio? Um mural de azulejos?
?
?
Um discurso falhado.
Um tanque sem fundo.
Um postal rasgado.
Uma incógnita.
Uma presença demasiada.
Um labirinto sem entrada nem saída.
Um fio sem contas.
Um rosário dito ao fim da tarde por um plebeu sem nome.
Uma promessa de cera.
Medo.
Assusta-me o rosmaninho arroxeado cheiroso das matas vagabundas.
Assusta-me o cordel de pintassilgos que atravessa a escada por onde passo.
Assusta-me o verbo maldito aflito que palpito estar para lá do mar.
Assusta-me o negro das oficinas de plataformas sem rugas que avisto da minha janela secreta.
Assusta-me o que não penso.
O que não sei.
O que não sinto.
Assusta-me o que quero ver adiante do leque que abano devagar.
Assusta-me o grito por dar.
Assusta-me o cordel de pintassilgos que atravessa a escada por onde passo.
Assusta-me o verbo maldito aflito que palpito estar para lá do mar.
Assusta-me o negro das oficinas de plataformas sem rugas que avisto da minha janela secreta.
Assusta-me o que não penso.
O que não sei.
O que não sinto.
Assusta-me o que quero ver adiante do leque que abano devagar.
Assusta-me o grito por dar.
Morte.
Paletas de cor chilreavam em volta do carrossel que se encontrava atrás das dunas de granito. Na véspera, ouviu-se o deambular das praças e as cortinas já corriam em devaneios de gotas de milho.
Era Domingo.
Ensaiava-se algo de novo.
As telas compridas, cansadas, pregadas aos tectos elucidavam quem havia de chegar, mas ninguém se apercebera do relâmpago que passou sem pernas nem penas.
Que diriam os chapéus altos que se cruzavam com as neblinas naquela noite de fúrias doces?
E as magníficas ondas que resvalavam dentro das taças perdidas?
Ninguém lá estava na bússola desvalida quando ela apareceu sem fortuna nem carro. Vinha nua, despenteada, com pés esculpidos em areias movediças, fazendo-se transportar por um urinol já antigo que roubou ao vizinho de seda púrpura que jazia na sala de estar.
Não avisou que vinha.
Não foi educada, nem pelas rãs que trouxe para ofertar a quem não a desejava encontrar ali.
Não cantou nenhuma canção.
Não escreveu o seu nome.
Nada disse.
Apenas veio. E sentou-se à espera que os cavalos marinhos e os lírios se transformassem em terra.
Pó.
Era Domingo.
Ensaiava-se algo de novo.
As telas compridas, cansadas, pregadas aos tectos elucidavam quem havia de chegar, mas ninguém se apercebera do relâmpago que passou sem pernas nem penas.
Que diriam os chapéus altos que se cruzavam com as neblinas naquela noite de fúrias doces?
E as magníficas ondas que resvalavam dentro das taças perdidas?
Ninguém lá estava na bússola desvalida quando ela apareceu sem fortuna nem carro. Vinha nua, despenteada, com pés esculpidos em areias movediças, fazendo-se transportar por um urinol já antigo que roubou ao vizinho de seda púrpura que jazia na sala de estar.
Não avisou que vinha.
Não foi educada, nem pelas rãs que trouxe para ofertar a quem não a desejava encontrar ali.
Não cantou nenhuma canção.
Não escreveu o seu nome.
Nada disse.
Apenas veio. E sentou-se à espera que os cavalos marinhos e os lírios se transformassem em terra.
Pó.
domingo, junho 05, 2005
A Confeitaria II
No largo desembocam ruas compridas, íngremes, algumas – daquelas que, quando subidas a pé, nos deixam as barrigas das pernas a trautear canções. A zona é antiga. As casas vêm do século passado e do anterior. Janelas pequeninas e muitas. As sardinheiras, essas, abundam noutros lugares. Lá, abundam as gentes dali. Os cafés, restaurantes e pastelarias não são muitos, e poucas são “grande coisa” cá para mim.
Numa dessas ruas está a pastelaria de cima. Cheira a bolos feitos na hora e a pães de todos os feitios amassados para além da porta que a gente vê do balcão. Do balcão também se vê o peito peludo e gordo do dono que nos atende de pano da loiça ao ombro. Tem sobrancelhas grossas, ar de que toma banho de vez em quando, nunca olha de frente para ninguém. As mesas são pequenas e velhas e sujas e as cadeiras não teriam espaço suficiente para a D. Luísa se sentar – onde poria a sua companheira de passeios?
Não me alenta ir à pastelaria de cima, até porque, quando isso acontece é sinal de que a Confeitaria está fechada. De férias. Em mudanças. De folga. Ou, fui eu quem chegou cedo demais.
A lá de cima tresanda a desumano ainda que o cheiro a bolos apeteça até aos mais cépticos quanto aos prazeres do palato.
Mais abaixo fica o “grandioso”. Um espaço diminuto, atarracado para tanto verde e rosa.
O raio das cores!
Pães com omeletes variadas enfiadas lá dentro a espreitar, panados com cara de 15 dias e sumos de garrafa, almoços aos montes. Ninguém conversa com ninguém, porque o verde e rosa não deixa e a verdade é que o lema da casa é comer e andar. A ementa aparece diariamente à porta, escrita numa toalha de mesa daquelas de papel branco aos quadradinhos, mal rasgada. Adiante!
Ao meio da rua está o rio. Quer dizer, o restaurante com nome de rio. Qual? Não me lembro agora, até porque, na verdade fui lá apenas uma vez em busca de um apregoado café que me disseram ser o melhor das redondezas. Eu nem me lembro do nome do rio, nem tão pouco do gosto que tinha o café. Sei apenas que o homem de barbas que é o seu proprietário me olha sempre como quem vê uma bola de Berlim apetitosa à hora do pequeno almoço ou do lanche.
Todos os dias chego ao largo da Confeitaria e depois de estacionar o malvado do carro que teimosamente parece nunca caber em lado nenhum, vou comprar os meus cigarros finos e dar dois dedos de conversa com a Suzy – a da papelaria.
Eu e a Suzy falamos de perfumes dia sim dia sim, e de perfumes todos os dias. A Suzy é simpática e sabe sempre que eu já cheguei. Conhece-me pelo cheiro. Parece tomar contacto com ele, desde que eu chego ao largo. (Mas, eu juro que não me banho em perfume!) Até amanhã Suzy. E já agora, vê lá se adivinhas qual foi o que comprei ontem?
A experiência requer uma certa preparação, e é por isso que percorro a rua e vou aos cigarros primeiro, antes de entrar na Confeitaria. Inspiro as flores que não cabem na loja da senhora florista, que é uma compradora compulsiva de material natural, e decoram gratuitamente o empedrado da calçada.
Chego. Entro.
- Bom dia, Bom dia, Bom dia!
- Como está a senhora? Vem muito bonita hoje. Vai o rissolinho e um sumo de maracujá?
- Oh Senhor Silva, quer-me cá parecer que o raio do sumo não anda a ter saída nenhuma. Já viu quantos sumos de maracujá eu bebi esta semana? Rimos.
- Então e as senhoras como estão hoje? A D. Luísa não vem?
- Nós bem e a senhora. A Luísa vem mais logo. Ficou a ver o cão polícia. Ela gosta muito de ver aquilo.
Sento-me.
Hoje falam das marchas populares, que já estão prontinhas para o desfile. Defendem o bairro que é o delas há anos. Contam-me as suas aventuras de quando também foram marchantes, e orgulhosamente se mostraram e foram felizes. Brilharam. Ganharam e perderam.
Entra e sai gente. Muita gente por vezes. Dias há em que não entra nem sai ninguém.
Nós estamos lá sempre.
O negócio tem fases. A crise aperta. As prateleiras estão meio cheias, tenta-se fazer de tudo para não fugir dali para fora e ir pedir trabalho noutras paragens. Às vezes os queques são de ontem e já estão secos. Também já não há pão quando lá chego. Hoje não se fez muito para não sobrar. O que se fez já foi.
- Oh Diabo! O que é que eu como então Sr. Silva?
- Sente-se aí que eu já lhe arranjo uma surpresa. Vai ver que vai adorar.
Sinto-me em casa.
Mas, afinal de quem é a responsabilidade de tudo isto?
É do tipo jovem e alegre e brincalhão como eu, que é o “manda chuva” lá do estabelecimento. Recebe-nos a todos, todos os dias, com um sorriso. Ás vezes, não se percebe o que diz. Perdeu a voz a gritar pelo Benfica. Conhece os nossos nomes. Os nossos segredos. Desvela-os por vezes, sem que o queiramos. Já lhe disse uma vez que podia montar uma banquinha de adivinhação ao lado da mulher dos jornais. Ele riu-se. Eu também.
- Você hoje não está nos seus dias. Você hoje vem triste. O que é que lhe aconteceu?
- Deixe-se disso e traga lá o café que eu hoje estou com pressa.
Será talvez a humanidade daquele lugar que me encanta. O olhar brilhante de todos nós, uns para com os outros, a cada reencontro. O sorriso do “manda chuva”, o seu olhar de malandro, que me devolve à adolescência perversa, deslumbrante. A amplitude do espaço que me acolhe e me deixa esbracejar livremente todos os dias. Converso que me desunho. Esqueço-me dos minutos que ali passo. Tenho a impressão de que quando lá estou, o tempo se dilata, e eu fico mais calma, mais preparada para regressar ao meu trabalho estonteante.
Numa dessas ruas está a pastelaria de cima. Cheira a bolos feitos na hora e a pães de todos os feitios amassados para além da porta que a gente vê do balcão. Do balcão também se vê o peito peludo e gordo do dono que nos atende de pano da loiça ao ombro. Tem sobrancelhas grossas, ar de que toma banho de vez em quando, nunca olha de frente para ninguém. As mesas são pequenas e velhas e sujas e as cadeiras não teriam espaço suficiente para a D. Luísa se sentar – onde poria a sua companheira de passeios?
Não me alenta ir à pastelaria de cima, até porque, quando isso acontece é sinal de que a Confeitaria está fechada. De férias. Em mudanças. De folga. Ou, fui eu quem chegou cedo demais.
A lá de cima tresanda a desumano ainda que o cheiro a bolos apeteça até aos mais cépticos quanto aos prazeres do palato.
Mais abaixo fica o “grandioso”. Um espaço diminuto, atarracado para tanto verde e rosa.
O raio das cores!
Pães com omeletes variadas enfiadas lá dentro a espreitar, panados com cara de 15 dias e sumos de garrafa, almoços aos montes. Ninguém conversa com ninguém, porque o verde e rosa não deixa e a verdade é que o lema da casa é comer e andar. A ementa aparece diariamente à porta, escrita numa toalha de mesa daquelas de papel branco aos quadradinhos, mal rasgada. Adiante!
Ao meio da rua está o rio. Quer dizer, o restaurante com nome de rio. Qual? Não me lembro agora, até porque, na verdade fui lá apenas uma vez em busca de um apregoado café que me disseram ser o melhor das redondezas. Eu nem me lembro do nome do rio, nem tão pouco do gosto que tinha o café. Sei apenas que o homem de barbas que é o seu proprietário me olha sempre como quem vê uma bola de Berlim apetitosa à hora do pequeno almoço ou do lanche.
Todos os dias chego ao largo da Confeitaria e depois de estacionar o malvado do carro que teimosamente parece nunca caber em lado nenhum, vou comprar os meus cigarros finos e dar dois dedos de conversa com a Suzy – a da papelaria.
Eu e a Suzy falamos de perfumes dia sim dia sim, e de perfumes todos os dias. A Suzy é simpática e sabe sempre que eu já cheguei. Conhece-me pelo cheiro. Parece tomar contacto com ele, desde que eu chego ao largo. (Mas, eu juro que não me banho em perfume!) Até amanhã Suzy. E já agora, vê lá se adivinhas qual foi o que comprei ontem?
A experiência requer uma certa preparação, e é por isso que percorro a rua e vou aos cigarros primeiro, antes de entrar na Confeitaria. Inspiro as flores que não cabem na loja da senhora florista, que é uma compradora compulsiva de material natural, e decoram gratuitamente o empedrado da calçada.
Chego. Entro.
- Bom dia, Bom dia, Bom dia!
- Como está a senhora? Vem muito bonita hoje. Vai o rissolinho e um sumo de maracujá?
- Oh Senhor Silva, quer-me cá parecer que o raio do sumo não anda a ter saída nenhuma. Já viu quantos sumos de maracujá eu bebi esta semana? Rimos.
- Então e as senhoras como estão hoje? A D. Luísa não vem?
- Nós bem e a senhora. A Luísa vem mais logo. Ficou a ver o cão polícia. Ela gosta muito de ver aquilo.
Sento-me.
Hoje falam das marchas populares, que já estão prontinhas para o desfile. Defendem o bairro que é o delas há anos. Contam-me as suas aventuras de quando também foram marchantes, e orgulhosamente se mostraram e foram felizes. Brilharam. Ganharam e perderam.
Entra e sai gente. Muita gente por vezes. Dias há em que não entra nem sai ninguém.
Nós estamos lá sempre.
O negócio tem fases. A crise aperta. As prateleiras estão meio cheias, tenta-se fazer de tudo para não fugir dali para fora e ir pedir trabalho noutras paragens. Às vezes os queques são de ontem e já estão secos. Também já não há pão quando lá chego. Hoje não se fez muito para não sobrar. O que se fez já foi.
- Oh Diabo! O que é que eu como então Sr. Silva?
- Sente-se aí que eu já lhe arranjo uma surpresa. Vai ver que vai adorar.
Sinto-me em casa.
Mas, afinal de quem é a responsabilidade de tudo isto?
É do tipo jovem e alegre e brincalhão como eu, que é o “manda chuva” lá do estabelecimento. Recebe-nos a todos, todos os dias, com um sorriso. Ás vezes, não se percebe o que diz. Perdeu a voz a gritar pelo Benfica. Conhece os nossos nomes. Os nossos segredos. Desvela-os por vezes, sem que o queiramos. Já lhe disse uma vez que podia montar uma banquinha de adivinhação ao lado da mulher dos jornais. Ele riu-se. Eu também.
- Você hoje não está nos seus dias. Você hoje vem triste. O que é que lhe aconteceu?
- Deixe-se disso e traga lá o café que eu hoje estou com pressa.
Será talvez a humanidade daquele lugar que me encanta. O olhar brilhante de todos nós, uns para com os outros, a cada reencontro. O sorriso do “manda chuva”, o seu olhar de malandro, que me devolve à adolescência perversa, deslumbrante. A amplitude do espaço que me acolhe e me deixa esbracejar livremente todos os dias. Converso que me desunho. Esqueço-me dos minutos que ali passo. Tenho a impressão de que quando lá estou, o tempo se dilata, e eu fico mais calma, mais preparada para regressar ao meu trabalho estonteante.