Cem Truques, Nu Azul

Um Lugar com Vista para Além de Mim ...

A minha foto
Nome:
Localização: Lisboa, Portugal

Simplicidade colorida de azul com um guache de água de colónia, seria certamente algo apetecível pelo cheiro, nem que fosse... Um alfinete-de-ama embebido em leite, uma sobremesa nova... E a imaginação, um rosto desfigurado de real...

quinta-feira, março 31, 2005


Para partilhar e devolver a TCA. Uma janela com vista para onde nós quisermos.  Posted by Hello

O Recital.

As faces rosadas dão-lhe um ar sadio. O rapaz é jovem, simpático, alegre, e vem disposto a encantar todos quantos o esperam, com o som que sabe conseguir produzir com os seus dedos assim que, determinadamente, os colocar sobre as teclas negras e brancas do piano.

O piano espera-o já na sala ao lado, no meio do palco do teatro que, sendo novo, vai ter daqui a pouco a honra de o receber. Mas antes, no foyer, é ele quem nos recebe com o seu sorriso num gesto de quem nos devolve a confiança e a certeza que nos falta. Diz-nos que vale a pena termos ido. Que vai estar verdadeiramente connosco e para nós, oferecendo-nos o que de melhor sabe fazer e mais ama na vida: a sua música. Eu não acredito desde logo. Contudo, aguardo ansiosa pela hora de o ouvir. Agora sei que esta dúvida foi insana, mas foi-me inevitável experimentá-la. Tornei-me mais incrédula com o decorrer do fio dos dias da minha vida. Mas, aguardo ansiosa na esperança de me sentir tocada por ele, e pelo som dos seus dedos. Talvez aguarde pelo renovar da crença nos génios da minha vida interior.

A campainha toca e a sala toma a forma do conteúdo do público que a preenche. O rapaz desapareceu, entretanto. Foi mudar de roupa. Foi vestir o personagem que é também, percebi depois, aquele que lhe permite estar mais próximo do seu verdadeiro ser. O Pianista.

De repente, escuro já, o piano surge aos nossos olhos de forma imponente, assustadora. É grande. Impõe respeito. Ele, é apenas um miúdo.
Aplaudimo-lo.
Ele agradece e senta-se no banco que lhe é destinado. Eu desejo que o recital lhe corra bem, pois preciso que lhe corra bem. Preciso egoisticamente que aquele recital me valha a pena.
Fecho os olhos e, sem que me aperceba como, ouço Bach soar aos meus ouvidos. Surpreendo-me, porque na verdade tinha visto há pouco um piano desproporcionadamente grande para o miúdo. Enganei-me. Afinal, ele parecia ter sido feito exactamente na sua justa medida.O repertório seguiu com Schumann, e eu, que até aí estava incrédula não pude distrair-me mais. O miúdo estava a começar a cumprir efectivamente o que tinha prometido antes. É pianista sem dúvida. Ao meu lado alguém chorava de emoção com o Schumann que nos oferecia mediante a intensidade e o peso certo com que tocava nas teclas do instrumento. É inteiro, completo e complexo. Cheio.

No final da primeira parte, a minha ansiedade transformara-se em outra: queria ouvir Prokofiev, Kabalewsky, Bartók. Acreditava já estar na presença de um talento como há muito não tinha o prazer de conhecer. E por isso, queria simultaneamente, e ainda, tirar a prova dos nove com a segunda parte.

A luz apaga-se de novo. O miúdo reentra no estrado. Parece-me mais descontraído agora. Senta-se de novo, e visita-nos com Mozart. Está a trabalhar ainda aquela peça, embora ela já se faça ouvir muito bem. É Mozart sem dúvida. O som nunca engana. Eu anseio pela próxima: um estudo de Prokofiev. O miúdo desaparece de novo, mas agora para dar lugar a um Mestre do piano. Com Prokofiev é Brilhante. Poderoso. Enérgico. Espontâneo. Rigoroso.
Kabalewsky, mal conhecido por mim, foi soberbo. Não pode ser um miúdo, dizia eu a mim mesma, incrédula agora pela presença transcendente da música que ouvia. Não há falhas. Não há recuos. Não há medo. Não há incertezas. Há somente som puro, forte, vigoroso, aterradoramente estimulante e intenso. Vivo.
Eu, volto a acreditar nos génios.
Fico estarrecida. De onde lhe vem o talento, não sei. De onde lhe vem tanta sapiência na interpretação destes compositores, também não sei. Sei que este puto é Brilhante.
Parabéns, Rui.

terça-feira, março 29, 2005

A Formatação das Almas

Ontem, Domingo de Páscoa, voltei mais uma vez ao Templo.
O forte cheiro a incenso anunciou a entrada do cortejo encabeçado por aquele que, naquela cidade beirã, pretende equiparar-se a Jesus Cristo, sendo o porta voz da sua mensagem de Amor. Atrás de si, em fileira ordenada, os súbditos cabisbaixos, de olhos postos no chão em sinal de respeito e de fé, levando ao colo as crianças que, sendo sua propriedade, propunham ao Baptismo Sagrado que proporcionará aos petizes uma vida livre do Pecado Original, e lhes garantirá protecção divina para a eternidade.

A Igreja estava cheia. Havia gente de pé.
Homens, mulheres e crianças tinham vestido as suas melhores roupas. Alguns tomaram banho. Todos se levantaram cedo para naquele dia estarem presentes no anúncio mais aguardado de sempre. A hora estava marcada há muito. O “Senhor” não os cumprimentou sequer, mas todos lhe prestaram homenagem fazendo vénias constantes. Enquanto se entoavam cânticos de Glória, supostamente alegres e festivos, eu olhava em meu redor e via rostos de olhar cansado, gente triste, lacrimejante, doentes alguns, pobres e velhos. Todos pareciam saber muito bem o que cantar e o que dizer e quando e como. Igualmente, todos sabiam bem quando deviam estar de pé e quando podiam descansar sentados. Ninguém conversava ou sorria. Ninguém parecia ouvir ou estar interessado na mensagem que lhes era dirigida. Talvez a mensagem não importe tanto assim. Talvez baste confiar e reproduzir na perfeição as palavras que estão já determinadas que entoem em coro, nas alturas certas. Assim, ninguém faz má figura. Todos são vistos por lá. Ninguém dá lugar a comentários menos dignificantes na rua onde moram. Todos pertencem ao rebanho. Ninguém está ou fica de fora. Todos são pessoas de bem.

Eu não estava na minha terra. Fui lá a convite de amigos e, talvez por isso, não me senti dentro nem fora. Simplesmente não era dali. Portanto, não sabia antecipadamente o que dizer ou fazer, pelo que me limitei a ser educada e respeitar em silêncio o que ali se passava. Mas, talvez por não ser aquela a minha terra nem a minha gente, esforcei-me por ouvir o que tanto os mobilizava e os sintonizava tão bem a todos, como se de um só se tratasse.Falava-se então da Ressurreição de Cristo. Leram-se os textos bíblicos que dão conta desse episódio fantástico jamais presenciado por algum humano conhecido, mas que, ao que parece, era afinal o motivo de tanta gente. Era o “segredo” revelado naquele dia. Ninguém viu nada, mas todos confirmaram; ninguém questionou nada, mas todos afirmaram que sabiam que era verdadeiro o seu conteúdo; ninguém rejubilou de alegria (e a mim pareceu-me que podia ser motivo para tanto, no mínimo), mas todos exaltaram quem lhes desvelou tal verdade. Porém, quem lhes disse que sabia era um senhor de vestes brancas, já grisalho é certo, mas que, para sábio não tinha barbas pontiagudas como era suposto, e a mim, ficou-me a dúvida se alguém realmente o conhecia bem. Falou de forma arrogante, pretenciosa, ameaçadora no tom de voz com que se dirigia à plateia. Alertou vezes sem conta para que acreditassem sem questionar ou duvidar no que lhes acabava de dizer, frisando com clareza, que todo aquele que arriscasse noutro sentido, seria severamente castigado.

Seguiram-se os baptismos das crianças, inocentes aos meus olhos, mas ali já pecadoras. A água para tal efeito, derramou-a o tal senhor pelas cabeças abaixo, num acto de pretensa purificação divina. Sempre achei que o baptismo era uma espécie de confirmação do nome de cada um, do elemento que confere a cada qual uma identidade capaz de ser inscrita no mundo social a que pertencemos. Mas, no Domingo, e de forma ligeiramente diferente do que já tinha pensado antes sobre o assunto, outra ideia me ocorreu: na verdade, aquele baptismo não pretende conferir nome a ninguém, mas antes, permitir que até os mais pequenos fiquem desde cedo a saber também. A conhecer a verdade suprema.Diz o povo sabedor que é de pequenino que se torce o pepino. Resta saber qual pepino, mas isso agora também não importa muito. O que parecia interessar a todos os que ali estavam presentes, era que aquelas crianças se iniciassem cedo na aprendizagem da lengalenga que todos já trauteiam de cor, e que também desde cedo façam dela a sua voz. Isto é, uma voz que os “defende” da perdição eventual em que podiam cair se se atrevessem a calcorrear os caminhos florestais da curiosidade. Os caminhos perigosos da dúvida, das incertezas, da liberdade de procurar saber por se saber que não se sabe.

As malhas da liberdade de pensamento, ao que parece, comportam naquele contexto o perigo maior de todos. “Não queremos cá dissidentes; não gostamos de vozes dissonantes”.

A certeza da morte, da finitude da vida, é sem dúvida o pecado maior. Apercebi-me de que, naquele lugar, jamais alguém poderá dizer: eu morrerei! Naquele lugar o Eu não tem lugar. Não existe. Apenas o Nós e o Ele. Supostamente, era o dia da renovação da mensagem de Cristo. Uma mensagem de Amor. Mas eu não vi Jesus por ali, assim como também não dei conta de que houvesse lugar ao Tu.
E sem um Eu e um Tu, não me parece que haja Amor, nem vida, nem verdade alguma.

“Queremos almas formatadas. Queremos gente sem mente. Queremos o vosso pagamento pelo segredo desvendado. Queremos que venham sempre à mesma hora, sem faltas, sem desculpas, sem preguiças. Queremos que sejam servos do “senhor” (o das vestes brancas com certeza!). Queremos que queimem os livros malditos. Queremos que se reneguem todos os dias e que batam na boca mil vezes, quando tiverem alguma coisa a dizer. Falaremos por vós, e nada tereis a temer, porque a vida é eterna, e sobretudo, é para viver noutro lugar, e um dia destes.”

Revi os meus amigos, conheci gente nova o que sempre me apraz. Redescobri que estou viva, que amo, e que enquanto ser vivo (mortal) e amante dos outros, não posso desculpar a mentira.

segunda-feira, março 21, 2005


Delicadeza azul... Posted by Hello

A cabra secreta.

Ás vezes é nas coisas mais simples e despretenciosas que encontramos os melhores desvelamentos de partes substanciais da "verdade" das coisas, que todos procuramos há séculos.
No último Domingo, no passeio matinal ao supermercado lá da zona, e depois de ter o carrinho das compras meio-cheio, decidi tentar fazer alguma coisa outra para tornar aquela viagem mais agradável e útil. Fui então, antes de ir directamente para a caixa, dar uma vista de olhos ás prateleiras onde repousam as habituais revistas femininas, os jornais diários e semanais e alguns livros ditos mais ligeiros (ou lights), considerados mais apropriados para serem vendidos nas superfícies deste género.

As notícias da actualidade, já as tinha lido no dia anterior; os novos habitantes da Quinta da Baracha, já os conhecia das manchetes e das capas de algumas revistas; o Código da Vinci e o livro de José Gil (que agradavelmente vi exposto no escaparate da entrada daquela zona) já os tinha lido há tempos, de maneira que a escolha estava realmente reduzida ao mínino. Mas, eis que, em conformidade do espaço em questão, me surge à frente do nariz um título que me chamou à atenção: "Descubra a Cabra Secreta que há em si". Pequei-lhe de imediato, folheei-o com alguma gula e levei-o comigo para a caixa com vontade de o começar a ler logo ali.

Ficar-me-ia bem se dissesse que o comprei para o abordar criticamente. Seria porventura mais correcto, se dissesse que o trouxe porque me interesso pelas questões das mulheres, pelos estudos do género. Certamente seria mais abonatório para mim enquanto investigadora das Ciências Sociais e Humanas. Mas não. Na verdade, apetecia-me rir naquele dia, divertir-me com algo leve e simples, apenas.

Chegada a casa, e por influência do bendito livro, arrumei as compras depressa nos armários respectivos e sentei-me na sala, como quem descansa um pouco, a lê-lo descaradamente. Fumei alguns cigarros e num ápice, tinha chegado ao fim. Ri-me imenso pelo caminho, uma vez que o livro em questão é realmente divertido, bem humorado, ligeiro como uma boa salada de frango e frutas acompanhada de uma taça de vinho verde fresco.
Estava cumprida a hora do descanso da guerreira, pensava eu. Porém, o seu conteúdo é de tal forma "light" que se me tornou claríssimo na mensagem que, creio, pretende passar. Acho até que, em poucas páginas e palavras quanto baste, diz aquilo que muitos investigadores sérios e credíveis, não têm a goragem de dizer, por saberem que é essa a "verdade". E aí, o meu descanso desapareceu, dando lugar ao frenesim que me ataca por vezes. Aquele que me faz pensar, reflectir e ter vontade de escrever sobre todas as coisas que me aparecem à mente como motes interessantes. Fui, portanto, catapultada para o lugar onde de facto me costumo cansar com prazer.

O livro fala de mulheres, particularmente do que se poderia chamar "o lado obscuro" das mulheres. Fala das suas simpatias forçadas; das obrigações não escolhidas que carregam aos ombros; dos silêncios a que as suas vozes estão votadas. Que vozes? As vozes da ambição, da sexualidade, do poder, da liberdade, do orgulho. Das únicas vozes que fazem ou poderão fazer delas, verdadeiras mulheres.
Por via de um nome/adjectivo nem sempre bem acolhido quer por homens, quer por mulheres - o de cabra - a autora (Elisabeth Hilts) tenta alertar as mulheres para aquilo que, em abono da verdade, faz de uma mulher um ser humano digno desse nome, ou pelo contrário, uma mera bonequinha de luxo, um adorno, um trapo sem graça, um ser sem alma.

Assim, e de uma forma absolutamente descontraída, Elisabeth Hilts recomenda às suas leitoras coisas como estas:

- Deixem de ser simpáticas, apenas porque sim. Não se privem de salgar a vossa vida, em vez de terem sempre o açucar à mão para por em tudo;

- Deixem de dizer que sim ao que não querem. Em vez disso, coloquem o "não me parece" como reposta substitutiva pronta, e vão ver que nem por isso a vossa elegância ou boa educação sofre danos, com a mais valia de se chatearem menos.

- Deixem de se privar de terem amigas, só porque são mulheres e as mulheres não se dão bem umas com as outras. No lugar da simpatia falsa, coloquem sem reservas a empatia e a cumplicidade que nos une a todas.

- Deixem de se vestir de cor-de-rosa. Assumam o vermelho, as riscas (mesmo que horizontais), os decotes que as mostram belas e sedutoras, o preto que as torna irresistíveis.

- Deixem de fingir orgasmos. Em vez disso, não percam as ocasiões em que possam ser felizes e ter prazer à séria.

- Juntem aos batôns e blushes que sempre levam nas carteiras de mão, preservativos coloridos e com sabores.

- Deixem os romances insípidos, as revistas de conselhos inúteis. Parem de docorar mésinhas para emagrecer. Assumam-se como são, de corpo e alma.

- Cultivem-se, instruam-se, formem-se, graduem-se e assumam sem reservas as vossas competências técnicas e profissionais.

- Não fujam das oportunidades de poder que lhes surgirem, só porque são mulheres.

- Falem sempre do que pensam e como pensam.

Em suma, descubram e desvelem a "cabra que há em nós". Segundo Hilts "é uma parte de nós inteligente, confiante e digna que sabe muito bem o que quer. Diz-nos para não aceitarmos menos do que nos é devido. E avisa-nos quando estamos prestes a embarcar em comportamentos derrotistas", ou, acrescente-se, no excesso de "toximpatia".

Acho que tenho definitivamente andado a encontrar a cabar que há em mim. Adoro-a. E Vocês? Sabem da vossa?

terça-feira, março 15, 2005

Helena de Tróia.

Numa sessão clínica recente, por ocasião do Natal, a minha paciente M. conta-me a seguinte história: “ O filme Tróia conta a história da Bela Helena de Tróia. Ela foi raptada pelos troianos e depois vai lá o cavaleiro Ulisses para a salvar. Ele constrói um cavalo que os troianos pensam ser um presente, mas que, na verdade, tem lá dentro um exército para os combater. Depois da guerra, Ulisses salva a Helena e leva-a de novo para a Grécia que é a sua terra Natal.”

Na verdade e segundo reza a história, a lenda da Helena de Tróia não é bem assim. Da mesma maneira, o filme a que se refere intitulado Tróia, não conta a história de Helena, mas pretende antes exaltar os poderes do Guerreiro Aquiles, esse sim, o verdadeiro protagonista - personagem principal interpretado por Brad Pitt. Portanto, a partir da criação da minha paciente estamos desde logo em presença de duas imprecisões: uma de carácter histórico, mais universal; outra de carácter identitário.

Helena vai por mão de Páris, Príncipe de Tróia e seu amante e amor (Páris é referido como um dos maridos de Helena) para Tróia, deixando para trás a Grécia e Menelau, seu esposo. A pretexto da desonra de Menelau, Agamémnon (seu irmão) parte para Tróia com mil naus, através do mar Egeu, encetando a famosa Guerra de Tróia com vista à conquista do seu território. A seu lado leva Ulisses, Guerreiro diplomata da narração e Aquiles, o maior dos maiores entre os poderosos guerreiros para o ajudarem em tal empresa. Páris morre na guerra, Helena volta para a Grécia com Menelau e Ulisses regressa sozinho, 20 anos depois conforme Odisseia de Homero.
De facto, se há história na história da Literatura Ocidental, que conta a história das histórias é a Odisseia de Homero, bem como a Elíada. E se, de entre todos os episódios retratados, há episódio importante que perdura na nossa memória, é o episódio da Guerra de Tróia. Provavelmente por isso, recentemente o realizador Americano decidiu pô-lo em filme, para nele destacar a personagem mítica de Aquiles – O Guerreiro dos Guerreiros. Neste filme, Helena, Páris e Ulisses (sobretudo) são figuras completamente secundárias. Contudo, a minha paciente, mulher letrada, com conhecimento suficiente para saber o que conta realmente a Odisseia, bem como o Filme de que se fala, reconta-me ambos desta forma tão maravilhosa quanto fantástica.

M. conta-me a sua história, na sua re-invenção da de Homero o que, desde logo, me leva a surpreender consigo mais uma vez e a sorrir. Arrisco-me a dizer que, tão magnânime e poderosa quanto a obra de Homero, é esta re-invenção/criação/re-criação de M.
M. chegou até mim, há uns anos atrás, sem história. Chegou até mim como um facto e nessa condição, nem M. nem ninguém tem espaço interior onde possa caber, fazer circular, desenvolver, re-criar qualquer história. O Regresso, como o de Ulisses, ía ser tempestuoso, incerto, perigoso, todavia ambas, como uma só Penélope, aguardámos pacientes, tecendo aqui e ali alguns pontos mal amanhados com as pontas de linha que vagarosamente foram aparecendo no seu discurso, soltas, aparentemente sem nexo, sem cor ...Como facto que era – e era assim que se sentia, qual borboto numa camisola de lã verde garrafa, usada até à exaustão – M. pedia-me sem voz que lhe inventasse uma qualquer história onde ela pudesse existir, tornando-se compreensível para que, compreendida se pudesse, enfim, compreender.
“Não sei se tem algum preconceito especial relativamente à homossexualidade, mas eu acho que sou lésbica, pelo menos tenho sido até aqui, e neste momento estou em ruptura com uma relação que tenho há algum tempo e isso está-me a pôr mal. Não sei se é pela ruptura, não sei se sou lésbica ou não. Gostaria de perceber isso ... estou confusa!” Preconceito eu? Não! Sou como Aquiles, poderosa, gerreira, protegida pelos deuses ... não fosse o calcanhar! Adiante.
Quis conhecê-la, saber quem era, de onde vinha, o que fazia, o que pensava, o que sentia. Quis recebê-la no meu espaço que hoje (na mesma sessão de onde parti de início) ela compara a uma lojinha de Lisboa, pequenina, cheia de bujigangas engraçadas, gerida por uma senhora que a desenrasca sempre por altura do Natal quando tem de comprar os presentes para oferecer à família e aos amigos.
“O Natal está aí de novo e eu ainda não fiz as compras. Mas hoje à tarde vou a uma lojinha pequenina que há em --- ver umas coisas. Todos os anos lá vou e entrego-me nas mãos da senhora – ela safa-me sempre. Tem lá umas coisas muito engraçadas, diferentes, e arranja-me sempre coisas giras para eu oferecer. Como ela viaja muito, tem sempre objectos muito originais.” Então e você, já fez os seus pedidos de natal? “Não. Este ano não estou lá muito animada. A minha mãe já me comprou uma peça de vestuário - diz ela que, com design - , de uma estilista americana. Vamos a ver o que sai dali. E a minha irmã queria dar-me um filme e perguntou-me se queria o Kill Bill ou o Tróia – devem estar em promoção numa loja qualquer por aí. Eu disse que preferia o Tróia. O Kill Bill não gostei muito. Fui ver ao cinema com uma amiga minha, mas nem chegámos a ver todo porque a minha amiga teve que sair a meio. Aquilo é muito pesado, começa logo com uma mulher a ser violada quando está em coma. E depois, a certa altura há um tipo que manda uma faca e espeta a faca no pé da mulher ... é só sangue por todo o lado. A Teresa não aguentou e teve de sair para ir vomitar, e eu fui com ela.”

Pois claro. Como eu compreendo a Teresa. Na verdade, o Kill Bill não é um filme que se preze até porque não nos dá a possibilidade de re-inventarmos a sua história. O Kill Bill é um facto, é demasiado real para ser reinventado. Mas o mais importante é que conta uma parte da história de M.. Também ela foi abusada sexualmente quando menina, quando ainda sem defesa (como que, em coma; acontecimento esse, que por sua vez a colocou em estado de coma mental). Da mesma forma que neste dia referiu o filme Kill Bill apenas de passagem, me contou num outro, em surdina, que isso tinha acontecido a uma outra Teresa da sua vida. “Na altura aquilo desencadeou um escândalo no bairro e o professor foi despedido. Ele meteu-se com várias meninas, mas eu nunca falei disso a ninguém.” Pelos vistos, também nunca ninguém to perguntou, não é verdade?

Creio que te entendo bem M., e à tua escolha – o Tróia. No momento em que te encontras, só podia ser essa a tua escolha. “Não percebo. Lá está a Drª a viajar outra vez, já estou a ver.” Sorrimos enquanto nos predisposémos a tecer mais um pouco da nossa tela, repegando nas laçadas que por vezes ficam apenas entre os dedos doridos, mas que aos poucos vão tornando clara a montanha do desenho que projectámos antes. “De vez em quando a Drª faz pr’ai uns filmes. Já vi que hoje está inspirada.” Eu apenas sigo o seu discurso. Se lhe parece que sou eu que invento as histórias, está enganada. Ou então, ainda não percebeu que quem me dá a matéria prima é você. “Eu sou apenas um rato. Não tenho criatividade para inventar nada. Você é uma montanha.” É evidente que M. está enganada em relação a si mesma, e a mim. Quem? Que rato, seria capaz de tão habilmente transformar, re-inventando, a lenda de Helena de Tróia? Ela é por demais conhecida, e ainda que tenha algumas diversas interpretações, há elementos que perduram e, nesses termos, se constituem em invariantes, porque invariáveis. Mas, talvez M. tenha alguma razão. O material é dela, o processador tenho sido eu. Mas, neste dia, quem de facto re-contou a lenda foi ela. Por isso, foi ela a montanha verdejante que cabe no nosso projecto.
Aos meus olhos, M. fora naquele instante assumidamente uma montanha por inteiro. Uma montanha mental. Uma montanha que, como todas as montanhas do nosso imaginário, são grandes, altas, verdejantes, fertéis. M. foi Mente naquele instante. Mente capaz de pensar. Deixou de ser rato, borboto, facto. Revelou-se Gente. E a Gente tem história, tem identidade, tem voz.

Como referi no início deste texto, existiam imprecisões de dois tipos na re-invenção de M. A primeira de carácter histórico, corresponde nada mais nada menos, à integração (revelada) da sua própria história interior. Até aqui, M. passou da que se assumia sem história, para a que olha o mundo (o seu e o dos outros) apenas por um buraquinho da persiana, que em segredo (até para si mesma) manteve aberta ao longo da sua vida, mas que, como me disse num outro dia, fechava quando o que via não lhe agradava. O mesmo tem feito com o que sente ser a nossa relação dentro de si – um espaço que a devolve a si mesma, na recuperação de quem foi e que dita quem é hoje; um espaço que conta uma história que lhe parece ainda, por vezes, irreal, mas apenas porque nova na forma ( não no conteúdo); um espaço de criação/re-criação de si, que lhe permite o resgatar de uma outra que convictamente esqueceu, mas que afinal até podia ser a Bela Helena de Tróia.

A segunda imprecisão foi de carácter identitário. Se é comummente aceite que os ratos não pensam, menos ainda os borbotos, mais certo é, que só as montanhas parem. Porém, ninguém pare sem ser parido e M. em vez de ter sido parida, foi parido.
“ Eu sempre gostei de coisas diferentes das minhas irmãs, mas a minha mãe nunca me deu grandes largas para as fazer. Gostaria de ter estudado música, adoro as óperas de Wagner. Quando andava a estudar ouvia o Anel dos Nibelungos de seguida, vezes sem conta. Eu fazia puzzles, jogos com Legos...sempre fui considerada rebelde..” Pois, queria coisas capazes de estimular a imaginação, a criatividade e de fomentar a dimensão relacional que em si apetecia. Mas, fazia coisas de rapazes.
Por ocasião do meu aniversário, algum tempo antes desta sessão que aqui me serve de mote, M. trouxe pela primeira vez um presente para mim – um livro, o seu preferido, de Thomas Mann: “As cabeças trocadas”. Queria muito que eu o lesse, pois segundo ela, continha uma chave que me iria ajudar a decifrar algo mais do seu enigma interior. Li-o . Mais tarde, perguntou-me o que tinha achado e eu, é claro, esperava que me desse a chave.
“Acho o livro muito interessante, agradeço-lhe que o tenha lido pois nunca o dei a ninguém. Acho que não iriam gostar dele e menos ainda iriam perceber porque me diz tanto. É uma dissertação sobre o amor, as relações humanas, há um triângulo amoroso e um filho que tem um handicap.” Cá estava a chave de que me falara. O filho que tem um handicap. M. também nasceu com um handicap. Faltava-lhe qualquer coisa que era muito importante para que fosse aceite e amada pela sua mãe – “Eu se calhar era para ter sido um menino. A minha mãe já tinha duas filhas. Eu já vim fora do tempo, e ela queria um menino”. Que troca imperdoável. O que fazer agora com o corpo e a cabeça? Afinal o que é que define uma pessoa? O corpo que tem, ou a cabeça? Thomas Mann trata o assunto com mestria, e por isso, resta-me agradecer a M. por mo ter dado a ler.

Quanto ás questões que me coloca também não sei responder, todavia sei que M. é uma montanha/mente parideira, como tal é um ser humano- Mulher. Fica com isto explicada a imprecisão identitária em questão. M., ao dar protagonismo a Helena e não a Aquiles, a propósito do filme Tróia, está porventura a dar-se a si mesma o papel que quer ter no filme da sua vida. Ela é uma mulher e não um homem e é também mais humana que Aquiles. “Quero desmistificar a minha história e a minha identidade”, foi o que ouvi que me disse nesta sessão. Considero que está em parte desmistificada, na mesma medida em que um qualquer mito, tem tanta consistência para perdurar, quanto pode ter de morto e mortificante, porque estanque. No momento em que M. re-inventa a lenda de Helena, resgata, revela e re-integra a força mental viva que é. Expande, usa e re-cria, o espaço interior onde existe e onde tem nome. Traduz o acontecer da nossa relação dentro de si, num reconhecimento profundo da janela aberta em que se constitui e que lhe permite respirar/repousar do novo parto mental (não anunciado ainda com o choro) de que procede.

“Este ano, para o natal, não tenho grandes pedidos. Deixei escapar apenas que não me importava que me dessem uma caneta daquelas para o computador. A minha não funciona lá muito bem. Mas de resto ...” Uma pen-disc, portanto. Vamos de férias M. Depois vemos isso da pen-disc pode ser?

Anónimo.

Se a lua fosse azul
e o mar acastanhado,
tu serias um arado.

Se uma caravana se comesse
e as túlipas falassem alto,
tu serias um pedaço de asfalto.

Se deus existisse
e as montanhas fossem fixas,
tu serias um parapente...

Esta rima não compensa
Este fado não se conhece,
e eu escrevo porque tensa
não tolero a infelicidade.


Sensualidades. Posted by Hello

"Vem a Primavera".

1.

Vem Primavera.
O jogo dos sexos renova-se
Os amantes encontram seus pares.
Já a mão subtil e conquistadora do amado
Faz arrepiar o peito da rapariga.
Ela tenta-o com o olhar furtivo.

2.

A uma nova luz
A paisagem revela-se aos amantes na Primavera.
A grande altura avistam-se os primeiros
Bandos de pássaros.
O ar já aqueceu.
Os dias são mais longos e os
Prados iluminam-se até tarde.

3.

Desmedida é a exuberância de árvores e ervas
Na Primavera.
Perpetuamente fecundo
É o bosque, são os prados, os campos.
E a terra dá à luz o novo
Sem cuidado.

(Bertolt Brecht, in Da sedução, poemas eróticos. Bizâncio)

segunda-feira, março 14, 2005

A plasticina.

A plasticina está inquieta.
A mão que a moldava, quente e estimulante, que lhe dava formas várias (cavalinhos, patos, elefantes, casas, carros, coelhos), partiu... As cores desbotadas, misturam-se agora na esperança de que possam, ao menos, assumir ares de arco-irís, mas nada. Está acabada esta plasticina. O menino não resistiu à tentação e quando a mãe se afastou para ir abrir a porta - a campaínha tocou inesperadamente a meio da construção do combóio de mil carruagens - misturou todas as barrinhas ainda soltas, para fazer uma salada russa. Ficou colorida não há dúvida, mas e agora? como acabar o combóio das mil carruagens? e como fazer depois uma caixa de lápis de cor? e um ramo de flores para dar à mãe, quando ela regressar da conversa que está a travar com a vizinha?
os dedinhos, desajeitadaos ainda, bem tentam desfazer a mistura, mas tal como o azeite quando misturado com o vinagre, faz vinagrete sem revés, as cores teimam em ficar agarradas umas às outras, e nada de voltarem a ser como dantes - individuais. Ora bolas para a salada russa! Mas que ideia parva a deste miúdo, hein!
Ouve-se a porta a fechar. A vizinha foi-se embora e a mãe está prestes a entrar de novo no quartinho para ajudar na construção do combóio... A angústia aperta, a mãe já tinha avisado para não misturar tudo. Como podemos ajudar o menino a recriar a salada russa? O que pode ser aquela salganhada?

Um cesto de frutas maduras;
Um colar de pérolas de muitas cores;
Um ovo de Páscoa;
Um leque amarrotado;
O recheio de uma gaveta de peúgas nos anos 60;
Um chapéu de mágico;
Uma bola de cristal ao sol;
Um Mundo;
Um coração apaixonado;
Uma explosão de felicidade;
Um tesouro.

domingo, março 13, 2005


Pormenores... Posted by Hello

A Confeitaria.

Do outro lado da praceta, em frente ao quiosque dos jornais da Maria, está o lugar do descanso, dos prazeres indiscretos do palato, da observação descomprometida do meu olhar. A Confeitaria.

De manhã, à tarde ou de noite não deixo de lá passar para recolher o rissol que vem marcado todos os dias para mim - marcado porque é o único que traz dois camarões lá dentro - e que o Senhor Silva guarda religiosamente num pratinho até que eu chegue. Todos os dias lá vou, todos os dias tomo um café com um rissol, todos os dias encontro lá o Senhor Silva à minha espera com o seu sorriso elegante, cavalheiresco e sedutor, que me faz projectá-lo no passado e imaginá-lo como um verdadeiro homem galante. Foi-o certamente. Disso não restam dúvidas. É-o ainda, apesar dos seus 70 e tantos anos.

Gosto do Senhor Silva e das histórias que todos os dias me conta da sua vida. Os tabefes que o avê lhe deu por ser filho de uma portuguesa. "Dizia-me que se via logo que eu só podia ter uma mãe portuguesa, porque nem pedir sabia!" Eu sorrio para ele, na esperança de que, do outro lado do balcão, ele entenda que eu o admiro e que, de alguma maneira, sou sua fã, sua pretendente, sua amante.
Arrasta os pés já, que o corpo não perdoa a idade nem a esconde. Demora que se farta a trazer o café à mesa, mas não sei lá porquê, eu ali nunca me sinto com pressa de coisa nenhuma. A única urgência que me assalta é sempre a mesma: Senhor Silva, não se esqueça do meu café!
Sei que com ele me trará mais um pedaço da sua vida que, sem dúvida foi escaldante, prazerosa, bem vivida.

Já foi um "cavaleiro da noite". Conheceu bares, restaurantes, casas de fado em Lisboa como a palma das suas mãos.
Já se cruzou com gente de todas as formas e feitios.
Já conquistou mulheres belas apenas com a forma como deliciosamente as beija com o olhar.
Já andou descalço a saltitar nas poças enlameadas.
Já chorou com dores de barriga por se ter excedido nas amoras silvestres que comeu junto ao poço que havia perto de sua casa.
Já se banhou nú no mar salgado de Aveiro.
Já se constipou a valer.
Já cortou o lábio superior quando a mão lhe tremeu a fazer a barba. E depois, pôs um penso rápido que durou dias no mesmo lugar, enfeitando-lhe o rosto. Andou mascarado com um bigode cor de mel.
Já foi atrevido com as moçoilas da sua aldeia.
Já andou à pancada por se ter atrevido demais com a namorada do chefe do grupo do seu bairro.
Já se casou, teve filhos e netos.
Já viajou pelo mundo; já comeu caldeiradas de peixe fresco que comprou de madrugada directamente aos pescadores.
Já bebeu hoje 7 cafés. "Senhor Silva, olhe o seu coração"; "Sabe que um dia uma cigana me disse que eu ia viver tanto quanto o meu avô. Qual deles, perguntei-lhe eu? Ela não soube responder, mas era mesmo importante eu saber, sabe? É que um deles, morreu aos 100 anos, e o outro, aos 106". Rimos com gosto!
Só mesmo o Senhor Silva.


A Dona Luísa é uma velhinha com 80 anos já feitos, como ela diz, linda de morrer.
É baixinha e gorducha, à boa maneira portuguesa, tem os cabelos branquinhos cravejados de anéis delicadamente enrolados uns nos outros, que fazem da sua cabeça uma corôa de pérolas, maravilhosa.
Tem as pernas em X o que lhe dificulta o andar, mas ela não se importa pois comprou uma perna extra, que lhe faz imensa companhia e a transporta para onde quer.
O dinheiro para o café, trá-lo no bolso do casaco de malha, já meio borbotoado, mas que é o seu prefrido. É muito quentinho, já dura há anos e o Inverno não tem estado para brincadeiras.

Gosta de ver as novelas da SIC, particularmente esta recente da "Maria do Carmo". Ouço-a contar as cenas do dia anterior às amigas com as quais se reúne todos os dias por volta das 16h. Sentam-se na mesa do canto, junto à janela. Têm vista para a rua o que convém. Costumam ser 4.
As outras senhoras são fãs das novelas da TVI, mas nenhuma delas se perde nem perde as histórias uma vez que cada uma conta, em sucessão, às outras, as cenas mais interessantes. Acompanham-nas todas portanto, em conjunto.
Moram sózinhas já. Os filhos partiram e os maridos também. Os netos aparecem de vez em quando. Têm as suas próprias vidas. Alguns são doutores, por isso, o orgulhos das avós.
As lembranças da vida que já tiveram seguem-se ao relato das novelas. Eu escuto-as com ternura. Adoro ouvi-las falar umas com as outras. Estamos entre mulheres.
Os partos que foram em casa, terríveis. As várias cores das menopausas que já lá vão. Os sacrifícios que fizeram, em tempo de Guerra e de fome, para criar os filhos. As bisbilhotices acerca da vida da vizinha que mora ao lado, e que, pelos vistos, não tem juízo nenhum. "Este mundo já não é o que era dantes. Dantes, comprava-se um prato de carapaus frescos por meio tostão; comiam-se sardinhas de barrica com batatas cozidas que era de chorar por mais; uma sardinha dava para três e a gente nem refilava. Aquilo sabia que nem ginjas. Hoje a rapaziada não sabe o que é viver. Tem tudo e deita tudo fora".
Concordo com elas. Não deixam de ter razão.

A dona Luísa é a matter do grupo. É a mais velha e a mais bonita. Tem um encanto natural, uma simpatia nunca vista, uma delicadeza feminina atroz, a sabedoria que me falta por ser tão mais jovem.
Cumprimento-as todos os dias na Confeitaria, e há pouco tempo não pude deixar de me meter com elas de forma mais descarada. Queria participar da conversa. Que me contassem as suas histórias. Revejo-me no futuro delas; gostaria que se revissem na minha juventude. São deliciosas. Bem hajam Senhoras. E a Dona luísa em especial.

quinta-feira, março 10, 2005

Saudade.

Branco
é sem dúvida a cor que domina estas quatro paredes onde me encontro.
Sinto-as, pouco a pouco,
juntarem-se duas a duas sem que, no entanto,
possa separá-las ou fugir delas.

Procuro luz, uma abertura talvez...
Grito! Choro!
Olho em volta, mas, são apenas quatro paredes.
De facto são vulgares e é bem possível que me assustem... estas quatro paredes.
Que faço? Preciso sair daqui.

Quero uma resposta para o que sinto, embora veja apenas estas quatro paredes.
É curioso. Uma delas tem escrito a palavra Saudade.
Está escrita em letras negras e quase não se vê.
Não sei o que significa, só sei que quero sair daqui!

quarta-feira, março 09, 2005

Mais tolices ...

A Vida é uma realidade inevitável.
Mas,
porque será que nem sempre se vive a vida como vida, mas
como o caminho para a morte?
Reparem
no brilho do Sol,
no azul do céu,
em tudo o que há de belo na Natureza!
Para quê? perguntam.
Para que a vossa vida não seja um túmulo nem
uma palavra apenas...

(estes dois textos: "tolices", escrevi-os na minha adolescência. Resolvi resgatá-los e partilho-os agora convosco com a alegria de voltar a saber quem fui...)

Série #2

Cavaleiro.
Tirania.
China.
Antúrio.
Paleta.
Obscuro.
Estrela.

Tolices de adolescente!

Para lá da eternidade há
o mundo da irrealidade...

Lá, as ideias vêem-se à luz dos pirilampos,
as rãs ladram
e os cães coaxam junto aos rios de sangue que correm nas veias das pedras
que vestem de negro as ruas...

Lá, o mar anda com o sol ao colo e as árvores passeiam como se fossem pássaros
que lá dão frutos para os outros se sentarem quando a chuva ralha com eles...

Lá, as cores comem-se ao almoço
e os sons servem de transporte aos mais ágeis de consciência.

Lá, os sentimentos enchem os buracos dos dentes
de quem não mora lá,

porque lá não mora ninguém,
ou melhor dizendo,
não mora mais ninguém além da minha imaginação.

terça-feira, março 08, 2005


um abrigo intemporal Posted by Hello

A mulher das castanhas.

O autocarro é sempre o mesmo. Percorro as avenidas de Lisboa sentada no lugar vago que apanho ao lado da janela e divago no caminho. Penso em mil coisas e em nenhuma em especial. Observo o mundo lá fora, vejo as gentes nas ruas, ouço o burburinho do que sussuram uns aos outros.
Vou só.

Ela senta-se ao meu lado, na coxia. Sinto-a próxima do meu corpo. Os lugares são apertados e nós, anafadinhas. Sorrio para ela de mansinho. Não a conheço. Volto o olhar para a janela. Não converso, mas num movimento inesperado, ouço-lhe a voz.
Ela traz um pacote de castanhas assadas na rua, daqueles feitos de folha de jornal velho. Ninguém o leu ainda, já está fora do prazo.
Eu não esperava vê-las ali - às castanhas. Foi em janeiro. Mas, ela viu-as algures e trouxe-as para saborear no caminho.

Fizeram-me companhia ambas.
Que feminilidade no modo como as descascava para não sujar a roupa que trazia, nem incomodar os vizinhos. Que delícia foi ouvi-la a trincá-las com prazer. A frescura do castanho meio esturricado, estremeceu-me por dentro. E aquela mulher, jamais me esquecerei dela.

Série #1

Trigo.
Centauro.
Ampulheta.
Destemido.
Flor de Aniz.
Sábio.

Flores.

São flores o que vejo ao longe.
São rosas, lírios, malmequeres, orquídeas de todas as cores.
São flores.
São mulheres que coloram a vida humana de forma única, bela, sensível e sensual.
São palavras, nomes, lágrimas, dores.
São flores.
São sucessos, fracassos, textos, ideias.
São esforços, trabalhos, imaginações e fantasias.
São flores de todas as formas e tamanhos e sabores.
São flores.

Sejam Felizes, Mulheres de Hoje e de Sempre. Feliz Dia Internacional da Mulher.

segunda-feira, março 07, 2005

Foi uma vez em Maputo.

Ele foi lá a trabalho. A actividade de consultadoria que exerce leva-o a lugares distantes daqui, e desta vez coube-lhe a tarefa de ir a Maputo. É bom no que faz, a empresa para a qual trabalha confia nele, ganha bom dinheiro. Não tem preocupações de maior a não ser o de querer ser feliz e fazer os outros com quem se cruza na vida, felizes também. É cidadão português, branco. Ele é, portanto, um homem da nossa terra e como tal herdeiro da nossa História, no que ela tem de bom e de mau, como todos nós. É natural. É relativamente jovem, filho da geração que fez, em tempos, a revolução de que todos nos orgulhamos por amor à nossa pátria - aquela que ficou colorida até hoje de vermelho. Aquela que poucos entendem para que serviu, ou deveria servir, e pior ainda, só alguns parecem certos das consequências que teve - ou seria suposto ter? - a Democracia.

Democracia é uma palavra interessante, tentadora, feliz talvez. Não sei o que significa ao certo, contudo ensinaram-me que tinha que ver com Liberdade, mais que não fosse a de expressão. Acho que todos nós portugueses sabemos isto. Acho até que defendemos todos que na bandeira da nossa revolução, também há-de estar inscrito qualquer dizer sobre a liberdade de expressão. Talvez seja mesmo o único dizer que ainda permanece nas nossas mentalidades como tendo que ver com a tão famosa revolução vermelha, e que nos levará ainda a defender que "valeu a pena". Eu acho que é pena, mas paciência! Já estou como diz o outro - É a vida!

Ele esteve em Maputo e numa noite mais quente, decidiu sair para conhecer e disfrutar dos prazeres que, apesar da miséria que pôde testemunhar desde que lá chegou, existem em Moçambique. Sobretudo, aqueles que estão disponíveis aos brancos que por lá andam ou passam e que, como ele próprio diz, são todos ricos, ainda "senhores", portanto. O salário médio mensal em Moçambique é de cerca de 30 Euros. Precisamente aquilo que, no mínimo, o meu amigo ganha numa hora. Ele e muitos de nós. Por isso, ele diz que os brancos de lá mais os que lá vão, são todos ricos. Como a riqueza é uma tentação ainda maior do que a Liberdade, o meu amigo não pôde deixar de se sentir rico também. É natural!

Era segunda feira, dia de folga para a maioria dos estabelecimentos comerciais dedicados ao divertimento e ao alívio dos stresses mais variados, pelo que não lhe foi fácil encontrar um porto de abrigo para a almejada noite de descanso e prazer. Navegando por entre ruas e ruelas, becos com e sem saída, finalmente eis que surge uma porta entreaberta que o recebeu com "boas vindas". Ele imaginou que aquela discoteca estava aberta para si - que até então se considerava homem de bem - mas, após o piscar de olhos que lhe permitiu recolocar o sentido da visão, momentaneamente desfocado pelas intermitentes luzinhas brilhantes, e pelos sons dos gira-discos, o desapontamento assolou-o. Eram muitos os que, como ele, tinham procurado abrigo naquele lugar. Homens e mulheres - muitas, rapariguinhas apenas - bebiam, dançavam, conversavam e riam por entre o fumo do tabaco, o suor dos corpos (queimados até à exaustão pelo sol dos dias que antecederam aquele até ao infinito), o cheiro de todos - dos que o exalavam como perfume natural, dos que o exalavam por estarem uns com os outros. O espanto sucedeu ao desapontamento. Não esperava ver tantas rapariguinhas ali áquela hora da noite. Eram esfomeadas, pobres e tristes, que no sexo procuravam o sustento de um mês, dois ou três, para si e para as famílias.

"Fiquei chocado! Não imaginei que tantas rapariguinhas, algumas com 13, 14 anos não mais, estivessem ali. É certo que só dançavam, mas eu percebi que aquela casa era mais uma das que, disfarçada de discoteca, na verdade se dedicava à prostituição. Miúdas tão novas não me interessavam. Aquilo tudo e aqueles homens meteram-me nojo. Por isso, fui andando até ao bar para beber uma água tónica. De caminho, cruzei-me com uma mulher. Era negra, e tinha 28, 29 anos. Achei-a atraente e coloquei-me ao seu lado para lhe oferecer uma bebida. Ela aceitou e começámos a conversar."
Que generoso e sensível é este meu amigo! Não se quis envolver com rapariguinhas, por serem menores, e por ter percebido que de facto protagonizavam a miséria daquele povo, daquela gente.

"A certa altura da conversa senti vontade de fazer amor com ela. Era muito atraente e, para mim, muito interessante.Perguntei-lhe se queria ir fazer amor comigo para o meu hotel. Eu calculava que ela fosse puta, ainda que para mim, naquele momento, fosse uma mulher que me atraía e que me fez sentir vontade de fazer amor com ela."
É claro que era puta, querido amigo. Tão claro como clara era também o motivo da tua saída naquela noite: vontade de te divertires, de ralaxares, de foder se se desse o caso. As discotecas servem para isso mesmo, a noite é a hora certa para acontecer, as putas também. É a vida!

"Ela disse que sim, que ia por 30 euros. Eu não disse nada por um instante ..."
Nem havia mais nada a dizer. Ela era uma puta que tem o seu preço, tu eras um homem disposto a ter uma noite de prazer. Não havia de facto mais nada a dizer.
"Ela deve ter achado que eu estava a achar caro, e disse-me que ía na mesma, por 15 euros, e que podia fodê-la quantas vezes quisesse, e fazer com ela o que quisesse. Fomos. Quando cheguei ao hotel fiz amor com ela. Não fodi, fiz amor com ela. Gostei dela, foi bom, correu tudo bem. No fim, ela perguntou se eu queria que ela se fosse embora, ou se eu queria que passasse a noite comigo. Disse-lhe que podia ficar, pois na verdade também a mim me apetecia que ela ficasse. Dormimos agarradinhos um ao outro e de manhã voltei a fazer amor com ela. Depois de nos lavarmos e de tomar o pequeno almoço, eu dei-lhe 60 euros e ela, antes de sair, disse que se eu quisesse voltaria no dia seguinte para repetir tudo sem me cobrar. Nem imaginas o prazer que tive em lhe pagar os 60 euros. Deve-se ter sentido bem tratada não achas? Com certeza não estava habituada a que a tratassem assim. Não achas esta história bonita?"

De início pensei em não responder. Não acho bonita nem feia. É uma história real. Mas ...
"Já viste? eu tratei-a muito bem. Olha que eu dei-lhe 4 vezes mais dinheiro do que os 15 euros."
Mau maria. Não queria responder, mas assim vai ter que ser. "Olha que pelas minhas contas, não lhe pagaste mais do que devias. Se a fodeste duas vezes nessa noite, e se cada foda valia 3o euros, é só fazer as contas: 2 vezes 30 = 60." "Não, não. Não estás a perceber. Eu podia ter feito um grande negócio e ter tudo aquilo por 15 euros, e eu dei-lhe 60, portanto 4 vezes mais. Além disso, ouvi-a, ela desabafou comigo, eu tratei-a bem". "Muito bem, não duvido da tua boa vontade nem dos teus bons sentimentos. Contudo, já que falas de dinheiro, acho até que lhe podias ter dado mais algum. Já viste que durante a noite toda que dormiu contigo, ela podia ter facturado muito mais. Por outro lado, tu mesmo me disseste que lá ganham num mês o que tu ganhas numa hora, portanto podias ter-lhe dado muito mais. Afinal tens bastante mais do que ela." "Não me digas que devia ter-lhe dado mais. Nem sequer estás a levar em conta que eu podia não ter mais na carteira. Além disso, eu é que era o cliente, e podia ter-lhe dado apenas os 15 euros. Dei-lhe dois meses de ordenado."
Eu sabia que a conversa devia ter parado aqui, mas não me foi possível uma vez mais não ripostar. "Querido amigo, se tu eras o cliente, ela era a patroa e o preço dela eram 30 euros por foda. Além disso, tu conhecias o chulo: a miséria. Por isso, e só por isso, ela teve de recuar face ao seu próprio lucro, porque o viu a ele pelo canto do olho. Entendido? Para terminarmos com esta conversa de surdos, apenas uma coisa mais: da próxima vez que te encontrares com chulos assim, não te percas em palavras macias nem te transformes em ouvidos atentos para te sentires bem. Dá dinheiro a quem estiver ao teu lado na cama para ficares descansado, pois se for assim, no dia seguinte talvez eles tenham o que comer".

Costuma dizer-se que em terra de cego quem tem olho é rei. Lá em Maputo, nas palavras deste meu amigo, os brancos são todos ricos. Que pena tenho eu que continuem todos tão cegos, apesar de às vezes terem a possibilidade de estar em terras onde é tão fácil ver sem óculos.

domingo, março 06, 2005

Eu. Chamo-me Azul.

Há uma espiral de fumo no ar, que decorre das veias entrelaçadas deste lugar de onde vos falo, e que faz dele um ser vivo. Os pensamentos percorrem a minha alma incessantemente, e eu tento disfarçar que não escorreguei neles, para me proteger de cair em mais alguém que conheci. A vida real acontece aqui. O azul da água do mar evapora-se no tormento do presente e eu invento um blog para me continuar, talvez sem rumo, sem destino, sem silêncios. Falo-vos pois, com a minha voz tranquila, azul que é ela também, e partilho o desabrochar dos sons que me traduzem e me definem no talento perdido. Estou aqui e espero-vos na inquietude do tempo. O sorriso e o brilho do meu olhar jamais serão estranhos e em vão. Conheço-vos? Não. Eu. Chamo-me Azul.